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A sala de aula de Fontainebleau

Reservas da Biosfera são criticadas por ambientalistas que não conseguem enxergar além da biologia. Em um mundo urbano, exemplos como o de Fontainebleau mostram sua real importância.

28 de julho de 2008 · 16 anos atrás

De uns tempos para cá, as Reservas da Biosfera têm sido questionadas como instrumento de preservação ambiental, quando estão localizadas próximas a aglomerados urbanos. Em troca de e-mails com Peter Frost, o galês que coordena o grupo de trabalho de Reservas Urbanas da Biosfera da UICN, verifiquei que sua frustração é imensa. Com muita propriedade Peter reclama que a maioria dos grandes pensadores do ambientalismo não conseguem ver além da biologia. Concorda que os Parques Nacionais urbanos podem até ser insignificantes de um ponto de vista da preservação, mas argumenta que vivemos em uma era em que pela primeira vez na História há mais seres humanos vivendo em cidades do que no campo. Nesse contexto, é nas Áreas Protegidas urbanas que as novas gerações têm seu primeiro contato com a natureza, o que acaba por transformá-las em incubadoras de ambientalistas, sem as quais o meio ambiente não tem futuro pela simples razão de que não terá suficiente força política para sobreviver em um meio onde os padrões de crescimento agrícola, populacional e econômico lhes são hostis.

Felizmente Peter não está só. Em recente entrevista a O Eco Kenton Miller, um dinossauro do movimento ambientalista, defendeu a importância da visitação a Parques Nacionais e citou especificamente a Floresta da Tijuca. Kenton presidiu a prestigiosa Comissão de Áreas Protegidas da UICN (WCPA na sigla em inglês). Sabe, portanto, que a Tijuca pouco protege se comparada à Tumucumaque, Emas, Iguaçu ou mesmo à Serra dos Órgãos. Em sua conversa com os repórteres de O Eco não destacou a Floresta pela sua relevância ambiental, mas porque ela tem um papel importante “para que a gente jovem continue a ir aos Parques Nacionais, para começar a apreciá-los e amar mais e compreender a natureza. Os cariocas devem ir, por exemplo, visitar o Parque Nacional da Tijuca para entender sua importância para o Rio e ver como essa mata cuida da água que vem de lá.”

Conheci Kenton Miller em 2000. Na ocasião eu dirigia a Tijuca e estava frustradíssimo com o baixo nível de prioridade que o IBAMA lhe atribuía. Tinha acabado de voltar de Brasília onde um funcionário graduado do órgão tinha me dito com todas as letras que, se dependesse dele, a Floresta não receberia um tostão sequer do orçamento federal. Justificou-se dizendo que o Parque era irrelevante para a conservação ambiental.

Mal retornara da capital, hospedei na Floresta da Tijuca uma reunião da Comissão Mundial de Áreas Protegidas da UICN, da qual Kenton ainda era membro. Além dele, participaram do encontro pesos pesados do ambientalismo como Adrian Phillips, Iolanda Kakabadse e o brasileiríssimo Cláudio Maretti. Apesar de ser o anfitrião, não participei dos trabalhos da Comissão que eram fechados. Pediram-me, contudo, que fizesse uma palestra sobre o Parque para a WCPA. Preparei uma apresentação técnica, mas na hora de falar não me contive, saiu uma defesa do papel das Unidades de Conservação Urbanas. Monologuei durante quase uma hora mas, na essência, o que disse pode ser resumido a essas linhas que depois publiquei um punhado de vezes:

“A luta contra a degradação da floresta amazônica não será vencida na Amazônia. Ela só pode ser ganha no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte, em Brasília. Aí é que estão sediados os grandes jornais, as redes de televisão, os formadores de opinião, as universidades. Das grandes metrópoles saem as modas e os padrões de comportamento, nelas vivem o Presidente da República, os governadores e os parlamentares. Nas suas ruas, restaurantes e bares são decididos o orçamento público e os rumos da nação.

Se não formos capazes de estancar o desmatamento, a caça e a degradação de parques urbanos, que sucedem à luz do dia e sob as vistas de milhões de pessoas, como poderemos sonhar em estancar a destruição da mata amazônica?

Em um regime democrático, nenhum tema vira prioridade nacional sem o apoio da opinião pública. Nesse sentido, a missão prioritária das áreas de conservação urbanas deve necessariamente ser a educação ambiental e a formação de um grupo de pressão em torno da agenda verde. Caso contrário, continuaremos sempre a ser uns poucos indignados a gritar no vazio.”

Meu discurso não convenceu o IBAMA. Seis meses depois da reunião da WCPA, estava exonerado. Tenho, todavia, a arrogância de achar que a visita que Kenton fez à Tijuca em 2000 foi um marco na sua maneira de pensar. Poucos meses após a sua partida do Brasil, fui convidado a ser o vice-presidente de um novo Grupo da WCPA totalmente voltado para o planejamento e manejo das áreas protegidas urbanas. Desde então, participei de inúmeros seminários, oficinas e conferências e visitei dezenas de Parques Nacionais urbanos mundo afora, onde dei palestras e troquei idéias. Alguns deles como os de Brisbane, Sydney, Cingapura, Nairobi e Cape Town me impressionaram. Outras áreas naturais em cidades, como as que vi em Brasília, Lisboa e Istambul ainda têm muito a melhorar de modo a contribuir significativamente para a divulgação da proteção ambiental em grande escala.

Recentemente, visitei mais uma dessas unidades. A Floresta Dominial de Fontainebleau, uma mata peri-urbana nos arredores de Paris. Fontainebleau é contígua às florestas de Trois-Pignons, la Commanderie e Larchant. Juntas elas totalizam 25 mil hectares sob cobertura florestal, o que é quase inacreditável, dada a sua proximidade à maior cidade da Europa continental. A biodiversidade do complexo é bastante significativa. Fontainebleu abriga diversas espécies de fauna endêmicas da França, bem como aves locais e migratórias e até mesmo mamíferos de grande porte. Em minha visita à Floresta deparei com mais de um grupo de cervos selvagens.

Fontainebleau é cortada por uma “freeway”, duas estradas nacionais, e uma linha férrea. Em menos de meia hora é possível descer da Torre Eifell e adentrar uma de suas trilhas. Trilhas aliás não faltam. Há caminhos bem cuidados por toda a parte, inclusive as GRs 1 e 11, ambas trilhas de longo curso, cada uma com centenas de quilômetros sinalizados. A Floresta também é pródiga em áreas para piquenique e, no outro extremo da aventura, em vias de escalada.

Caminhei na GR1 por cerca de 20 quilômetros. Nas cinco horas que passei na Floresta tive uma companhia variada: ciclistas em suas mountain bikes, grupos de cavaleiros trotando pelos caminhos de terra, famílias jogando cartas nas áreas de lazer, excursionistas em pequenos passeios, caminhantes com mochilas cargueiras palmilhando a totalidade dos 527 quilômetros da GR1 e escaladores pendurados em boulders. Há de tudo em Fontainebleau. São 13 milhões de pessoas que a visitam todos os anos com fins de recreação. O problema é que nem todos os visitantes estão ali em busca de diversão. A divisão em gomos da Floresta, que é esquadrinhada por centenas de estradas de terra, não deixa dúvidas. Em Fontainebleu ainda se cortam árvores com fins comerciais. Com efeito, 50.000 m3 de madeira são retirados de seu seio todos os anos. Junto com eles, vão um sem número de animais, cuja caça é permitida.

Há cinquenta anos essas ações eram passíveis de serem realizadas em paralelo com a recreação. Hoje, os milhões de visitantes da Floresta não querem mais dividi-la com outras atividades que a televisão, os jornais e o bom senso ensinaram não serem compatíveis com a conservação da natureza. “É preciso salvar Fontainebleau” gritam as centenas de cartazes afixados por toda parte nos arredores da Floresta. Há milhares de automóveis cruzando a Floresta? Há caça? Há retirada de madeira? Há pressão urbana? Há poluição? Há espécies exóticas? Fontainebleau abriga quilômetros de estradas florestais? Nada disso importa. “Queremos um Parque Nacional em Fontainebleau!” Ongs poderosas e associações ambientalistas já se associaram ao projeto e o movimento para a criação do parque é forte.

O ONF (Office National des Forêts), órgão responsável pelo manejo da área, argumenta tecnicamente que Fontainebleau não reúne os atributos que justificariam sua proteção na categoria Parque, mas acusou o golpe. Já reconheceu que Fontainebleau tem mais importância como equipamento de lazer do que como floresta comercial. Nos últimos anos tem plantado mais do que retirado de madeira do complexo natural. Também tem sido obrigado a explicar com muito mais minúcia e frequência as razões de seu manejo da Floresta. Sobretudo, é necessário explanar à exaustão o que é um Parque Nacional, para que serve, como deve ser manejado e as razões que levam Fontainebleau a ser protegida com outro estatuto de conservação.

O caminho trilhado é belo e francamente favorável ao meio ambiente. Pode ser que Fontainebleu nunca chegue a ser um Parque Nacional, mas certamente será cada vez mais e mais protegida, cada vez menos impactada por processos comerciais, cada vez mais renaturalizada. Ao fim e ao cabo, talvez acabe por reunir as condições exigidas para ser um Parque Nacional, ainda que de pé quebrado, mas se isso não acontecer, não importa. O processo terá servido para educar 13 milhões de franceses (e seus familiares e amigos), ensinando o que é e para que serve um Parque Nacional, bem como todos os diversos níveis de conservação da natureza. Outras áreas protegidas da França, atuais e futuras, certamente se beneficiarão desse exercício de conscientização “in loco” e, o resultado será uma França com um meio ambiente mais saudável.

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