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(Estudo de) caso de Polícia

A PM do RJ mostra que instituições sem regras claras definham. Se moldado como um órgão com hierarquia e plano de carreira baseados no mérito, o Instituto Chico Mendes dará certo.

27 de fevereiro de 2008 · 16 anos atrás

Li outro dia que o Instituto Chico Mendes vai organizar uma série de seminários e palestras sobre sua futura estrutura organizacional e de pessoal. Trata-se de medida salutar e tempestiva. Já tratei desse tema aqui algumas vezes (vide minha coluna aqui em O Eco Quem Encarnará o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade? Publicada em 15.05.2007) e tenho convicção que, se moldado como uma instituição de Estado, com hierarquia clara, academias próprias, plano e fluxo de carreira claros e baseados no mérito e na antiguidade, o Instituto tem tudo para dar certo. Afinal, uma das coisas que tornou o IBAMA o órgão desconjuntado que conhecemos foi a falta de regras claras e de estrutura de carreira. Sem forma é muito difícil produzir substância. Por outro lado, já que a discussão está aberta, vale também lembrar que a forma precisa sempre ser repensada e readaptada, sob pena de perder a substância. Vejamos o caso de uma instituição bi-centenária cujo arcabouço institucional de Estado não impediu uma série de problemas gravíssimos.

Me refiro à Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, corporação que se encontra em crise. Não é de hoje que avisos em forma de notícias sobre o estado deletério da PM Fluminense vêm pipocando nos jornais. Para quem acompanha o dia a dia do Rio de Janeiro, o sinal vem de longe. Ainda era jovem quando no fim da década de 80, o então sub-comandante do 19º Batalhão, Tenente-Coronel Astério Pereira dos Santos, denunciou um esquema de notas frias. Segundo a denúncia, as contas da Unidade atestavam a compra de autopeças suficientes para suprir a reposição dos motores do Batalhão de Copacabana durante mais de um ano. Os carros todavia, rodavam em condições precárias e o almoxarifado da Unidade policial estava vazio. Até aí tudo bem. Corrupção existe em qualquer lugar. Apure-se e punam-se os culpados. Se houve apuração, não foi bem explicada. Na grande imprensa apenas noticiou-se a passagem compulsória do oficial denunciante para a reserva (a aposentadoria dos militares) e a transferência do comandante denunciado para o 23º BPM que, sediado no Leblon, não é exatamente uma geladeira da PM. Em um país sério, poderíamos concluir que o denunciante fôra leviano e, como tal, foi punido. Só que o Tenente-Coronel Astério, afastado da PM, prestou concurso para o Ministério Público e ingressou em suas fileiras. Ficou então a pergunta até hoje não respondida: a PM não apurou ou o MP aceitou um caluniador em seus quadros?

Fatos noticiados posteriormente criam uma analogia que ajudam a intuir a resposta. Coronéis que ocupavam o cargo de comandante-geral da PMERJ em diferentes governos de variada coloração política, ao passarem para a reserva, foram declarados incapacitados por surdez, expediente que lhes vale certas vantagens fiscais. Alguns desses “incapacitados”, entretanto, continuavam trabalhando em assessorias parlamentares e até mesmo na Secretaria de Segurança. Também essa notícia está a espera de que saibamos o que se passou a seguir.

No outro extremo da hierarquia da oficialidade, um tenente foi preso no Corcovado, acusado de aceitar propina dos bilheteiros ali colocados pelo IBAMA. Segundo a imprensa, levava dinheiro para fechar os olhos à subtração de uma montanha de recursos cobrados aos visitantes e não repassados aos cofres públicos.

Ora, se um coronel está no topo da carreira e, portanto deveria dar o exemplo, por outro lado, um tenente deveria ter conduta ilibadíssima. Tenente é um jovem recém diplomado na Academia D. João VI. Prestou vestibular e encarou três anos de formação. Como o nome sugere, não deveria sair de lá deformado. Tenente também pode ser aquele praça que após anos e anos e anos de polícia, com muito esforço e dedicação, conseguiu galgar todos os graus de sargento e suboficial até chegar à oficialidade. Menos de um em cada cem soldados alcança o posto de tenente sem passar pela Academia. Essa forma de ascensão é rara e foi criada para premiar por antiguidade e esforço os melhores dos melhores. A nata da nata, nunca policiais que se disponham a ir ao Cristo Redentor apropriar-se do sagrado dinheiro público.

Por falar em oficiais, é bom lembrar que o Estado gasta um bom dinheiro com seu treinamento e instrução. Para se formar tenente o jovem passa três anos e 4870 horas/aula em uma Academia com regime de internato e ensino em tempo integral, seguidos de estágio remunerado de diversos meses, na patente de Aspirante a Oficial. Depois, para chegar ao topo da carreira, o PM tem que continuar a se atualizar. A própria corporação facilita os estudos que podem ser feitos dentro ou fora da Polícia. Muitos, como foi o caso do Tenente-Coronel Astério, estudam Direito. Outros fazem cursos mais técnicos, como perícia criminal e operações especiais. Após a patente de Capitão, para serem promovidos, todos têm que passar em um curso de especialização e ninguém chega a Coronel sem ser aprovado no Curso Superior de Polícia que, entre suas exigências, obriga o aluno a redigir uma tese de interesse para a Segurança Pública, comparada a uma dissertação de mestrado das universidades civis.

Como se vê a PMERJ foi pensada para ser uma instituição de Estado, tal como as Forças Armadas e o Itamaraty. Corporações cujas políticas, estrutura e pessoal atendem aos interesses permanentes da população e que não estão sujeitas às pequenezas do jogo político e variável de cada governo. Órgãos cuja única porta de entrada é uma Academia e onde as promoções seguem regras pré-estabelecidas de merecimento e submetidas a um quadro de acesso, organizado pelos oficiais (ou diplomatas) superiores. Na PM, assim como no Itamaraty e nas Forças Armadas é impossível nomear cargos em DAS. Os Diretores de Departamento, os Coronéis e Generais não podem ser trocados por gente de fora ligada a partidos políticos recém eleitos. Qualquer oxigenação nessas instituições tem que ser feita, segundo os princípios da antiguidade e hierarquia, com gente de dentro, concursada e formada na própria corporação.

Então, o que deu errado na PMERJ? Não sou policiólogo, mas três coisas saltam aos olhos de qualquer cidadão interessado nos caminhos trilhados por sua própria sociedade. A primeira é óbvia. Os sinais, fartamente noticiados na imprensa há mais de vinte anos, não serviram de alerta para os Governos. Casos pontuais de corrupção não foram punidos como deveriam ser, ensejando uma metástase do sistema. Há tempos que diversos oficiais sérios da PM têm chamado a atenção para a politização e para a deterioração da instituição. Entrevistas aqui, declarações acolá, palestras ali, blogues na Internet e, por fim, a formação de uma coligação de coronéis a clamar por uma reforma completa foram sistematicamente ignorados, como se tratassem de obra de um punhado de baderneiros. Mais ainda, a evasão de policiais, que tem ocorrido em grande escala, não foi vista como sinal de que há algo de podre no Reino da Dinamarca. Nenhuma instituição séria, em nenhum lugar do mundo perde seus melhores homens sem que isso mostre que alguma coisa está profundamente errada. Se a instituição está bem, por que quem é bom quer deixá-la? A PM do Rio perde seus melhores quadros sem que nada seja feito a respeito. De 1995 a 2004, todos os primeiros de turma na Academia D. João VI já abandonaram a PM. Um deles foi morto, 2 estão cedidos e 7 despiram a farda para sempre. Mas não são só os tenentes que estão saindo. Até tenentes-coronéis, no andar de cima da carreira, estão procurando vida melhor. Muitos estão fazendo concurso para delegado da Polícia Federal. Os mais bem preparados, alguns com curso de operações especiais do BOPE, passam. Com efeito, segundo o jornal O DIA, os PMs do Rio estão se inscrevendo em massa nos cursos preparatórios para vestibulares públicos de outras carreiras. Somente na Academia do Concurso, 400 PMs estão matriculados para tentar a sorte em outra instituição. Quem perde não é a PM, é o cidadão Fluminense.

A segunda coisa errada na PM é menos evidente, mas é corolário da primeira. Trata-se de uma lei de mercado: não existe bom serviço com salários abaixo da média. Quem é competente vai necessariamente buscar uma profissão melhor remunerada. Ao longo dos anos, foi feito um pacto de mediocridade entre os diversos Governos e os policiais. O caso dos comandantes-gerais que foram considerados incapacitados por surdez é paradigmático. O Governo prefere fechar os olhos a pequenas ilegalidades e deixar que cada um se vire por si, em busca de vantagens pecuniárias, do que adotar uma política salarial séria, geral e à altura do risco envolvido na atividade policial. O ouvido que é mouco para os coronéis é irmão dos olhos que não vêm a tropa trabalhando em bicos nos seus dias de folga. Dane-se que o soldado ganha mais na segurança particular do que no seu emprego oficial. Dane-se que chega cansado ao trabalho e não consegue render o que a população espera dele. Ao Estado é mais conveniente pagar um salário de fome a um policial e deixá-lo correr atrás do seu pão nosso de cada dia privatizando a segurança- que deveria ser atribuição do Estado-, do que repensar a estrutura da PM e pagar um salário condizente com um Estado que tem a segunda maior arrecadação do país.

Por fim o mal uso da estrutura militar e a politização do oficialato não permitem o emprego correto da Polícia. O problema da PM não é ser militar. Polícias Militares funcionam perfeitamente bem em diversos países do mundo. Assim é no Canadá, no Chile, em Portugal e na França para citar apenas alguns países. O problema é que não faz mais sentido hoje em dia termos uma polícia mutilada, que não pode fazer o ciclo completo, que é somente ostensiva, estando impedida de investigar e de lavrar autos circustanciados. Ao impor a continuação dessa divisão medieval entre PM e Polícia Civil, estamos incentivando uma competição predatória entre duas instituições de um mesmo Estado e insistindo em uma maneira obsoleta de fazer polícia. Por outro lado, qualquer pessoa que tenha um mínimo de vivência no meio militar sabe que não é possível que uma instituição que tem 40 mil homens seja comandada por um coronel. Na estrutura militar, coronel é uma patente operacional. No Exército, comanda um batalhão, na FAB chefia uma base aérea, na Marinha, seu equivalente, o Capitão de Mar-e-Guerra, comanda um navio. Na PM, o coronel comanda batalhões, assume Comandos de Policiamento de Área (que aglutina um conjunto de batalhões), dirige Diretorias de Ensino, Material e Pessoal entre outras, chefia o Estado Maior Geral e comanda a corporação.

A politização dos níveis superiores de qualquer carreira é inevitável. Afinal é nesses níveis que as políticas públicas são pensadas e desenhadas. O que, entretanto, em qualquer país sério, se quer evitar, é a politização dos níveis operacionais das carreiras públicas. Nesse extrato, onde se executam as políticas públicas, deseja-se um perfil técnico que se paute pelas normas e regulamentos em vigor. Ao colocar o nível operacional no mesmo patamar hierárquico do comando geral, obtivemos uma politização dos comandantes de batalhão. O sujeito que hoje está à frente de uma unidade obscura nos confins do interior Fluminense pode, de uma hora para outra, ser catapultado para um cargo da alta chefia da PM. Já é coronel. Para sair de um comando operacional e ser nomeado Comandante de Área, Chefe do Estado Maior ou mesmo Comandante Geral, não precisa passar pelo crivo técnico de seus pares. Em outras palavras, como não há o nível de general na PM, também não há uma última promoção pautada por critérios técnicos entre o topo da carreira operacional e as funções de coordenação. Assim, a um coronel operacional vale mais a pena estar bem articulado politicamente com o Prefeitos dos municípios de sua jurisdição, com os deputados mais influentes e com os potenciais candidatos a Governador do que se preocupar em cumprir ordens estritamente técnico-operacionais emanadas do Comando Geral.

No atual sistema, o engarrafamento e a politização da patente de coronel ocorrem em detrimento da operacionalidade da polícia. Por outro lado, encurta a carreira dos oficiais PM, obrigando a passar para a reserva homens com grande experiência de Polícia, que ainda estão na flor da idade. Não havendo a possibilidade de promover os melhores coronéis ao generalato, dando-lhes assim uma sobrevida de até 12 anos na PM, muitas vezes “aposenta-se” compulsoriamente oficiais com 50 e poucos anos de vida. Idade certamente provecta para um combatente do BOPE, mas longe de ser um impeditivo para as funções de planejamento e para os grandes comandos. Vejamos os exemplos de instituições similares. A FAB, com um efetivo de 60 mil homens tem 88 oficiais generais; a marinha brasileira, com 55 mil homens tem 80 almirantes, o Exército português, com 22 mil soldados, tem 47 generais, a Guarda Nacional Republicana, equivalente em Portugal da PM, é comandada por 10 generais. Por que, na PM, com quase 40 mil homens é preciso igualar o nível de coronel ao de general? Quem ganha com isso? Certamente não é a sociedade.

Voltando ao que nos interessa. A ministra Marina Silva foi capaz de ver os sinais de exaustão no modelo de gestão das nossas UC dentro da estrutura do IBAMA. Foi mais longe, teve a coragem de agir e criar um instituto novo exclusivamente dedicado ao tema. Agora é chegada a hora de dar forma a este instituto, com organograma e carreiras adequadas à Missão. Nesse sentido, é louvável o processo de palestras e discussões internas que o Chico Mendes está promovendo. Mas cuidado, ministra. Se a forma é importante, não se esqueça de dar atenção à substância e, sobretudo, aos mecanismos internos e externos de avaliação e reavaliação permanente. Afinal, está aí a PM Fluminense para provar que não é apenas força de expressão: saco vazio não fica em pé.

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