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TVA vs Hill, mais uma vez

TVA versus Hill é um marco judiciário extraordinário, que demonstra o que é uma Corte independente. É também uma aula sobre separação de poderes que o Brasil deve assistir.

21 de agosto de 2007 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Por diversas vezes, ao tratar das questões referentes às complexas relações entre meio ambiente, infra-estrutura, Poder Judiciário e Ministério Púbico fiz referência à decisão proferida no caso TVA vs Hill que é o paradigma quando se trata da construção de barragens, ou outras obras de grande porte, e seus impactos sobre espécies listadas como ameaçadas de extinção. Nos Estados Unidos a proteção de espécies, ao contrário do Brasil, é feita por lei e, portanto, expressa uma inequívoca manifestação de vontade do Congresso em preservar a diversidade biológica. No contexto do Direito Administrativo americano, o Congresso delega ao Executivo, no caso representado pelo Secretário do Interior e pelo Secretário de Comércio, a autoridade para incluir espécies na lista de animais ameaçados, cabendo ao Fish and Wildlife Service administrar o Endangered Species Act (ESA) e zelar pelas espécies tuteladas pela lista. A Environment Protection Agency (EPA) é responsável pela administração de outras leis tais como a National Environment Policiy Act, o Clear Water Act ou o Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act (CERCLA), por exemplo.

O ESA, à época da decisão do caso TVA vs Hill, em sua seção 7, ostentava a seguinte redação: “Federal departments and agencies shall…with the assistance of the Secretary, utilize their authorities in furtherance of the purposes of [the] Act by carrying out programs for the conservation of endangered species ….and by taking such action necessary to insure that actions authorized, funded or carried out by them do not jeopardize the continued existence of such endangered species…” A seção 7, como se vê do texto legal proibia qualquer ação que pudesse por em risco a existência de espécies ameaçadas de extinção. Se deixarmos de lado a questão ambiental e olharmos a decisão sob o prisma do Direito Constitucional – que é a forma atual como tem sido olhado o caso TVA vs Hill pelos juristas norte-americanos -, veremos que ela encerra uma lição de separação de Poderes e de isenção do Judiciário perante as pressões do Executivo. Vale notar que importantes obras de Direito Ambiental não trazem mais o caso TVA vs Hill como matéria de estudo , por considerá-lo superado.

A chave constitucional da decisão TVA vs Hill se encontra na seguinte passagem do voto do Justice Burger: “It may seem curious to some that the survival of a relatively small number of three-inch fish among all the countless millions of species extant would require the permanent halting of a virtually completed dam for which Congress has expended more than $ 100 million. The paradox is not minimized by the fact that Congress continued to appropriate large sums of public money for the project, even after congressional Appropriations Committees were apprised of its apparent impact upon the survival of the sail darter. We conclude however that the explicit provisions of the Endangered Species Act require precisely that result.”

Se formos um pouco mais adiante na decisão, veremos que em uma outra passagem do voto, o Juiz Burger afirma claramente que o desejo do Congresso era: “to halt and reverse the trend toward species extinction whatever the cost.” Ante tão clara concepção da Corte, de fato, não havia outra decisão possível que não fosse a de determinar a paralisação das obras. Entendeu a Suprema Corte que, diante do expresso mandamento legal “do not jeopardize (não arriscar, não por em perigo)”, não havia qualquer margem de discricionariedade para o Executivo que deveria se limitar a cumprir o comando que o Legislativo havia acionado. No particular há que se verificar que a discricionariedade administrativa já havia sido exercida com a inclusão do snail darter na relação de animais a serem protegidos. Vale observar que, no caso brasileiro, algumas decisões judiciais de Cortes Regionais Federais têm sido tomadas em aparente conflito com os expressos termos da norma constitucional – haja vista que deram ao Texto Fundamental uma interpretação bastante alargada e, em geral, privilegiando a ação Executiva em detrimento da letra constitucional. Refiro-me ao caso do § 6º do artigo 225 da Constituição que determina ao Executivo que se muna de autorização do Congresso Nacional para localizar usinas nucleares, sem o que não poderão operar. No caso TVA vs Hill, a Suprema Corte entendeu que a mera apropriação de recursos para uma atividade não indicava que o Congresso estivesse revogando uma norma que claramente determinava o não molestamento de espécies definidas em uma relação elaborada pelo Executivo.

A interpretação que o TRF2 tem dado ao § 6º do artigo 225, conforme mostra o aresto a seguir transcrito2:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA, QUE DEFERIU LIMINAR, DETERMINANDO A SUSPENSÃO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL DA USINA NUCLEAR DE ANGRA III. I – Trata-se de Agravo de Instrumento, interposto por ELETRONUCLEAR em face de Decisão, proferida em Ação Civil Pública, que indeferiu seu ingresso no feito como litisconsorte passiva necessária, deferindo, ainda, a liminar requerida pelo MPF, determinando a suspensão do procedimento de licenciamento ambiental da Usina Nuclear de Angra III. II – Pretendeu o MPF, na referida Ação Civil Pública, a declaração de nulidade dos atos administrativos tendentes ao licenciamento de empreendimento nuclear conhecido como Angra III, tendo em vista suposto descumprimento dos mandamentos constitucionais previstos nos arts. 21, XXIII, a; 49, XIV e 225, § 6º. III – Quanto à legitimidade passiva da ELETRONUCLEAR, sabe-se que a mesma recebeu autorização do Poder Público para atuar como construtora e operadora de usinas nucleares. Destarte, tendo sido iniciado o procedimento para licenciamento ambiental prévio da Usina de Angra III e, posteriormente, por decisão judicial, tendo ocorrido a suspensão de tal procedimento, conclui-se pela necessidade de ingresso da Agravante no pólo passivo do feito, mormente ao se verificar que o resultado da demando originária do presente Agravo de Instrumento irá afetar diretamente as atividades da mesma. IV – De fato, a CRFB/88 exige a autorização do Congresso Nacional para a instalação de usinas nucleares. Estabelece, também, que lei federal deverá determinar o local em que as mesmas deverão ser instaladas. V – Cumpre registrar, todavia, que o planejamento para a efetivação do empreendimento Angra III iniciou-se muito antes da ordem constitucional atual. Registre-se, também, que consoante a CRFB/67, emendada em 1969, a autorização para instalações nucleares se dava sob a forma de decreto presidencial. Desta maneira, no ano de 1975, nos exatos termos constitucionais, o então Presidente da República, através do Decreto n.º 75.870, autorizou a estruturação de uma terceira unidade de usina nuclear (fl. 85). VI – Verifica-se, assim, que o empreendimento em testilha foi iniciado ao tempo da Constituição anterior, que dispensava as exigências de autorização do Congresso Nacional para a construção de usinas nucleares, bem como a disposição sobre a localização das mesmas. VII – Deve-se afirmar, desta maneira, que não há que se falar em caducidade do Decreto n.º 75.870/75 em confronto aos preceitos da nova ordem constitucional. E isto porque, analisando a jurisprudência do Pretório Excelso, quando o texto constitucional pretender assumir efeito retrospectivo, deve assim se manifestar expressamente. VIII – Outrossim, ainda que se admita a imprescindibilidade de cumprimento de tais requisitos, entende-se que os mesmos não devem vincular o início do procedimento de licenciamento ambiental. E isto porque é neste procedimento onde serão realizados todos os estudos necessários para a efetivação de empreendimento considerado poluidor,estudos estes imprescindíveis ao Congresso Nacional no momento em que for avaliar se deve ou não autorizar o funcionamento do referido empreendimento. IX – Caso contrário, o Congresso Nacional estaria sem qualquer referencial para emitir sua decisão, seja sobre a aprovação da construção da usina, seja sobre o local em que a mesma deverá ser construída. X – Agravo Interno prejudicado. XI – Agravo de Instrumento provido.”

Sem pretender polemizar com a decisão, aliás proferida em sede de Agravo, parece-me evidente que se avançou em uma interpretação da norma Constitucional muito além daquela que seria razoável, sobretudo em caso da magnitude do decidido. Ao revogar a Ordem Constitucional anterior, o Constituinte de 1988 dispôs de forma inteiramente diversa sobre energia nuclear. Caso ele entendesse existente algum direito adquirido a ser mantido na nova ordem constitucional, no que se refere à instalação das Usinas nucleares, certamente teria feito a ressalva, como fez para diversas outras questões nas disposições constitucionais transitórias. TVA vs Hill, no particular, é uma lição de independência judiciária e não intervenção sobre a vontade do Congresso até o ponto de descaracterizá-la, como ocorreu na decisão brasileira apresentada. Não há que se confundir planejamento com instalação e muito menos autorização para planejamento com autorização para instalação. Além disto, no caso concreto, ante a não implementação da autorização, haja vista que nada foi construído, não me parece razoável que tal interpretação possa persistir contra expressa disposição constitucional. Há, indiscutivelmente, um custo envolvido; contudo, em primeira análise, parece que o Congresso, assim como o norte -americano, não se importou com os custos, pois achou que outros valores superavam o mero custo financeiro.

Penso que no caso brasileiro, só existem duas alternativas legais válidas: (i) ou o Congresso aprova uma lei para a localização de Angra III ou (ii) muda a Constituição, como aliás tem sido a regra quando a norma constitucional desagrada.

O poder do Executivo Americano para elaborar as listas de espécies ameaçadas, sob a doutrina Chevron (Chevron USA v. Natural Resources Defense Council, 467 U.S. 837 (1984)) tem sido amplamente reconhecido e o Poder Judiciário deve aceitá-lo com base em deferência ao poder discricionário do Executivo, desde que a ação executiva tenha sido razoável. Assim, a Suprema Corte reconhece que o Congresso delegou a atribuição de formar a lista para o Executivo (Chevron Step 1) e que a escolha foi razoável e não exorbitante (Chevron Step 2). Cabe, segundo a doutrina Chevron, ao Executivo definir as questões de políticas públicas a serem aplicadas, segundo a determinação do Congresso, tal como expressas em lei.

TVA vs Hill teve como uma de suas conseqüências uma modificação no texto da seção 7 do ESA com a substituição da expressão “do not jeopardize” por “is not likely to jeopardize”, ou seja, provavelmente não prejudique, não arrisque. A norma, portanto, se tornou muito mais abstrata e ampliou o poder discricionário do Executivo para avaliar as medidas a serem tomadas em cada caso que, conforme a doutrina Chevron devem ser respeitadas pelos tribunais desde que sejam razoáveis.

TVA vs Hill é um marco judiciário extraordinário e demonstra claramente o que é uma Corte independente e, ao mesmo tempo, é uma aula sobre separação de poderes. Não há dúvida que a decisão, se analisada sob o prisma de danos ambientais concretos, custo e benefício, investimentos realizados e a serem realizados é extremamente exagerada e absurda. Por outro lado, se o Tribunal tivesse resolvido “legislar” e dar uma interpretação à norma que, evidentemente, não era possível, teria dado ao Executivo a possibilidade de, simplesmente, não cumprir a determinação do Legislador que, exagerada, por certo, era aquela mesmo. Seguramente, todo o sistema de proteção de espécies estaria colocado sob uma discricionariedade absoluta do Executivo, o que não era o desejo do Congresso.

Em um país como o nosso, que necessita de institucionalização, TVA vs Hill deveria ser ensinado em todos os cursos de Direito Constitucional como um exemplo a ser seguido por todos os poderes, pelo Congresso para que faça leis razoáveis, pelo Executivo para que não tente exercer poderes que não tem e pelo Judiciário para que não “crie” normas por meio de interpretação “ad hoc”.

1 Craig Johnston, William Funk e Victor Flatt – Legal protection of the environment, St Paul, Thomson/West.

2 TRF2. AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 151046. DJU DATA:24/04/2007

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