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Apareceu a margarida

Com ou sem pan-americano, está mais do que na hora da cidade do Rio ter uma boa marina para barcos. É simples, e a questão não vale o escândalo que os jornais têm propalado.

22 de janeiro de 2007 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Graças à Carina e ao Gabriel tenho retornado aos dourados tempos da infância e músicas como “A linda rosa juvenil”, “Apareceu a margarida” e outras voltaram à trilha sonora de minha vida. Não posso deixar de reconhecer que isto é muito bom. Confesso que nas minhas corridas diárias pelo aterro do Flamengo ou pela Lagoa, sinto aquela solidão que caracteriza o corredor de longa distância e que foi muito bem tratada por Alan Sillitoe servindo de base para um excelente filme. Entre uma música e outra no MP3, sempre que passo em frente aos prédios da Vasp e da Varig na Avenida Almirante Silvio de Noronha, parte final do aterro do Flamengo, me pergunto qual o motivo da polêmica entre IPHAN, Ministério Público, Marina, COB, Prefeitura e tudo mais?

Ao que me lembro, ou pelo que consta dos jornais, a questão é referente à visibilidade do Pão de Açúcar que, segundo se informa nas folhas, seria prejudicada pela famosa garagem da Marina. Contudo, como quase sempre ocorre no Brasil, as paixões partidárias se formam sem que o corpo de delito seja conhecido. Discutimos a morte, sem ver o cadáver. Felizmente, o site O Eco faz um jornalismo sério e, tal como na tradicional canção infantil, “apareceu a margarida”, ou seja, foi publicada uma foto do projeto. O que se vê ali é uma obra que, situada à frente do prédio da Varig, cobre a visibilidade de tal prédio e, obviamente, cobre a visibilidade daqueles que estejam passando pela Avenida Almirante Silvio de Noronha. O mencionado trecho, se for comparado com a extensão total da orla da Enseada de Botafogo e com a orla da Praia do Flamengo é ínfimo ou desprezível. Aliás, a horrorosa ampliação do Aeroporto Santos Dumont não foi bloqueada pelo IPHAN e, esta sim, impede a visibilidade do Pão de Açúcar. Em relação ao Pão de Açúcar, ademais, é desconhecida qualquer manifestação do IPHAN quanto ao prédio existente na Fortaleza de São João bem abaixo da montanha e que é, francamente, de lascar.

Pelo que podemos ver da foto, a garagem não se constitui em qualquer obstáculo à visibilidade de nada. Aliás, é importante que se rediscuta o papel dos órgãos de proteção ao patrimônio histórico e cultural no contexto de uma sociedade democrática. Como se sabe, a proteção do Patrimônio Cultural foi instituída na Ditadura Vargas e, de lá para cá, as suas concepções básicas não foram mudadas. Tais órgãos se julgam no direito de dispor sobre bens alheios sem dar qualquer satisfação aos proprietários, como é comum acontecer. Diariamente, os tribunais anulam tombamentos e outras medidas de “proteção” devido ao mais completo desrespeito aos direitos de terceiros. Muitas vezes, os processos de “proteção” são fundados em razões obscuras, pareceres sem qualquer consistência, sem que os proprietários possam se manifestar e, o que é mais grave, as compensações oferecidas aos proprietários dos bens tombados são insuficientes, quase ridículas. Em geral se limitam à isenção do IPTU.

Argumenta-se que a função social da propriedade justifica a intervenção. E é verdade. O que não se justifica é que um cidadão isoladamente arque com os ônus para o que seria um bem para a coletividade. Contudo, mudar as regras vigentes para o tombamento é um tema tabu. Por que o estado não compra os imóveis, reforma e revende para quem se interessar em morar em um bem tombado? Em uma cidade que está oferecendo empréstimos para outros estados, isto não seria problema… O curioso no caso da Marina é que uma das grandes prejudicadas é a prefeitura do Rio de Janeiro, que vê um importante empreendimento ser paralisado, na minha opinião, sem qualquer motivo relevante. Por outro lado, essa mesma prefeitura, agindo tal qual o IPHAN, semeia APACS de mão cheia. É o feitiço virando contra o feiticeiro, ou pimenta nos olhos dos outros é refresco.

Alegarão uns e outros, palpitando sobre as atividades alheias, que para o Pan não há necessidade de uma garagem “tão grande”. É possível que isto seja verdade, o que não descaracteriza a afirmação como uma bobagem. Uma cidade como o Rio de Janeiro, obrigatoriamente, deve ter uma boa marina, dotada de uma boa garagem de barcos, pois ainda que não pareça, somos uma cidade marítima, com uma baía de águas plácidas e que, dispondo da estrutura náutica adequada, terá um crescimento muito grande de um importante segmento turístico. Particularmente, prefiro o turismo náutico ao turismo sexual para a nossa cidade. Turismo náutico, sem marina, não existe. Veja-se a sem graça praia de Punta Del Este, que possui uma grande Marina e que atrai milhares de embarcações.

Outros poderão dizer que a garagem dará um lucro enorme para o seu proprietário. Ainda bem! Chega de atividades que dão prejuízo em nossa cidade. Que o proprietário tenha muito lucro, que empregue muitas pessoas e que o estado cobre até o último centavo do imposto devido.

Sobre o tema, circula na internet um “parecer” da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas que traz as razões da entidade para um firme posicionamento contra o empreendimento da marina, que como consta do texto, é bem maior do que a garagem do Pan. Com o fito de não distorcer as razões da mencionada associação, passo a transcrever alguns trechos do documento: “A integração do parque à paisagem natural fica evidente quando se usufrui de seus espaços internos, que permitem perceber que caminhos, jardins e massas vegetais se complementam em permanente movimento muito próximo às linhas da natureza, à exuberante paisagem natural representada pelas montanhas – o Pão de Açúcar entre elas – e a Baía de Guanabara. As perspectivas, que se descortinam de todos os seus ângulos, valorizam a percepção destes elementos da paisagem, constituindo um dos principais cartões postais de nossa cidade. O tombamento do Parque do Flamengo ocorreu ainda na fase inicial de sua implantação, tendo sido solicitado desde 1964 com o objetivo de protegê-lo das pressões da especulação imobiliária ao qual estava sujeito, como bem dizia Carlota de Macedo Soares, uma das mais bravas defensoras de sua concretização: “Pelo seu tombamento, […] o Parque do Flamengo ficará protegido da ganância que suscita uma área de inestimável valor financeiro, e da extrema leviandade dos poderes públicos quando se tratar da complementação ou permanência de planos. Uma obra que tem como finalidade a proteção da paisagem e um serviço social para o grande público obedece a critérios ainda muito pouco compreendidos pelas administrações e pelos particulares”. Em 28/07/1965 o Parque do Flamengo, em sua totalidade, foi inscrito no Livro Arqueológico.

Na verdade, todo este processo teve início em 1995 com a concessão da área da marina à EBTE – Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia. O projeto em processo de implantação nessa área do parque prevê a transformação de área pública em área de negócios, com centro de convenções, centro de exposições, instalações de clube privado, shopping center, garagem para 2.000 veículos e outras atividades, totalizando mais de 100 mil metros quadrados de área construída. Estabelece ainda o cercamento de toda a extensão da Enseada da Glória, fragmentando um panorama inestimável sob o pretexto de proteção aos barcos ali estacionados, em quantidade muito superior à capacidade do espaço disponível. Do outro lado da enseada, os bate-estacas cravam as fundações de garagem náutica sobre laje a ser disposta sobre o espelho d’água tombado pelo IPHAN, com cerca de 16 mil metros quadrados de área, sobre a qual serão edificadas as garagens que chegam a atingir 18 metros de altura.

Além de apropriar-se de área pública, toda esta intervenção virá danificar irreparavelmente a paisagem, atraindo volume de tráfego e de usuários incompatível com o nível de tranqüilidade que se espera em um parque público. E vale a pena ressaltar que não foram cumpridos os procedimentos naturais de aprovação de projetos desta envergadura nos órgãos competentes, de preservação do patrimônio cultural (IPHAN, INEPAC) e dos aspectos ambientais (FEEMA, IBAMA).”

Inicialmente, cabe uma pergunta, se os “critérios são ainda muito pouco compreendidos pelas administrações e os particulares” quem os compreenderá? Até onde sei, ou somos da administração, ou somos particulares. Logo, em princípio, ninguém entende os tais critérios. O aterro do Flamengo, como se sabe, é uma das maiores intervenções sobre o meio ambiente no Rio de Janeiro e, com rara felicidade, conseguiu dar uma solução conjunta para vários problemas. Contudo, de vez em quando, ele está no meio do furacão. Quem se esquece da frustrada tentativa de construir três ou quatro quiosques nas calçadas da praia e para os quais se queria o Estudo Prévio de Impacto Ambiental? Foi um must.

Como se vê, do parecer, o que se encontra por trás de toda a polêmica, não é a garagem, mas um empreendimento de maior envergadura que, infelizmente, não foi dado ao conhecimento público. Talvez O Eco consiga uma foto para que o público, finalmente, saiba do que se trata. Assim como não podemos aceitar unilateralmente a concepção do projeto, não podemos unilateralmente aceitar as críticas. Será que uma área do tamanho do Aterro do Flamengo (Parque Brigadeiro Eduardo Gomes) com cerca de 1.200.000m² pode permanecer sem qualquer modificação ao longo de tantos anos? Quais as modificações possíveis? Quem define o que é possível e o que não é? Uma cidade pode ter uma área das dimensões do aterro subtraída à autoridade do Prefeito legitimamente eleito pela comunidade? O IPHAN pode se sobrepor à Administração Municipal? Até que ponto? Estas são questões que, uma sociedade democrática e preocupada com a proteção de sua memória não pode deixar de enfrentar.

Voltando ao caso concreto. A Avenida Silvio de Noronha tem um quiosque no seu início no qual são levados pagodes da maior categoria, com barulho, confusão e toda uma gama de atividades que estão muito longe da tranqüilidade que pode se esperar de um parque público. A dura realidade é que o Aterro do Flamengo hoje estál abandonado, com a grama crescendo como na época do companheiro Saturnino Braga, que decretou a falência da Cidade quando ocupou o posto de Alcaide, secundado pelo companheiro Jô Rezende que, sem favor nenhum, foram os piores administradores que esta vila já teve, pelo menos daqueles que pude testemunhar a Administração. Ocorrem no Aterro do Flamengo assaltos, estupros e outros incidentes da crônica policial com muita freqüência. Os locais destinados ao lazer da coletividade, tais como a cidade das crianças e outros, estão em péssimas condições. Estas são questões que precisam ser debatidas amplamente e não sobre o calor de uma demanda. É de lamentar que a Câmara de Vereadores, até onde se sabe, não tenha se posicionado firmemente sobre o tema que é de sua competência originária, pois diz respeito à uma das principais áreas públicas da cidade.

Enfim, todas estas questões são muito relevantes e merecem uma discussão bastante aprofundada sobre o que pensamos para a nossa cidade e o que podemos fazer para que ela saia do marasmo que se encontra com crescimento econômico negativo já há muitos anos. A indústria, diariamente, abandona a cidade, o comércio tem muita dificuldade em se desenvolver. Resta-nos o turismo. Mas será que temos infra-estrutura turística compatível? O IPHAN, certamente, é um importante agente para a revitalização turística do Rio de Janeiro. Poderia cobrar que a União, por exemplo, cuidasse de seu patrimônio. Poderia ajuizar ações contra a União e muitas outras coisas viáveis, tais como liderar um movimento pela valorização de nosso patrimônio cultural e sua integração nas atividades turísticas.

Em toda a discussão, a única coisa que realmente é do conhecimento de todos é o nome dos personagens de tal comédia de erros. “Onde está a Margarida, Olê, olê, olá. Onde está a Margarida. Olê, seus cavalheiros. Ela está em seu castelo Olê, olê, olá. Ela está em seu castelo. Olê, seus cavalheiros. Mas eu queria vê-la. Olê, olê, olá. Mas eu queria vê-la. Olê, seus cavalheiros. Mas o muro é muito alto Olê, olê, olá. Mas o muro é muito alto. Olê, seus cavalheiros. Tirando uma pedra. Olê, olê, olá. Uma pedra não faz falta” .

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