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O código de defesa dos consumidores e as montanhas

Ibama tenta enquadrar os apilnistas no Código de Defesa do Consumidor para se proteger de processos na hora em que os atletas se machucam em unidades sob gestão federal.

30 de novembro de 2006 · 17 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Todos sabemos que o Brasil é o nirvana dos carimbos e da burocracia; na verdade, atingimos o ápice quando, há muitos anos atrás, foi criado o Ministério da Desburocratização cujo titular foi Hélio Beltrão que, seguramente, era um dos grandes representantes da enorme quantidade de brasileiros indignados com exigências absurdas, carimbos desnecessários e tudo aquilo que foi criado para transformar uma questão simples em uma cabala acessível apenas a alguns poucos iniciados. Normalmente, em países com características como a do Brasil existem os chamados “direitos indisponíveis” que são “direitos” que os indivíduos não podem abrir mão e, portanto, devem ser fruídos compulsoriamente. O legislador parte do pressuposto que o consumidor é um ser totalmente alienado e só faz contratos que o prejudiquem. Assim, as chamadas cláusulas abusivas são inválidas e os contratos de consumo devem ser interpretados, como regra, em favor do consumidor. Em tese, o sistema tem se mostrado operacional e, efetivamente, muitos abusos contra as pessoas comuns têm sido coibidos. Porém, a característica da burocracia é colocar tudo e todos em um mesmo saco, sem atentar para as peculiaridades.

É exatamente sobre peculiaridades que desejo falar. Para surpresa minha, fui informado que o IBAMA tem sido réu em algumas ações judiciais, fundadas em dispositivos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ajuizadas por parentes de vítimas de acidentes ocorridos no interior de alguns parques nacionais. Como não conheço os casos em detalhes, seria leviano que emitisse uma opinião sobre eles. Contudo, algumas questões em tese podem e devem ser suscitadas. Vejamos o caso dos chamados esportes radicais e, mais especialmente, o alpinismo.

Como sabemos, o fascínio da humanidade pelas montanhas é tão antigo quanto a própria humanidade. Desde que o Homem identificou a primeira elevação natural, ele tentou subi-la. O Gabriel, por exemplo, vive tentando subir nas cadeiras da sala, muito embora não tenha sequer dois anos. Não poucas vezes sofre quedas espetaculares. E o incrível é que, quanto mais cai, mais tenta subir. Os alpinistas são assim. Quando o Rei Alberto da Bélgica veio à Floresta da Tijuca, solicitou ao cerimonial que fosse agendada uma escalada ao Pico da Tijuca. A burocracia de então, por não entender nada de alpinismo e alpinistas, mandou escavar uma escada na pedra, acabando com o barato de Sua Alteza Real.

Alpinismo é risco. Alpinismo sem risco não existe e se existisse, não teria alpinistas para praticá-lo. É importante frisar que o IBAMA, assim como nenhum órgão estadual brasileiro, tem em seus parques uma estrutura capaz de oferecer boas condições para a prática do alpinismo. Os abrigos são precários, senão inexistentes; não há uma guarda florestal habilitada para realizar salvamentos na montanha; os controles e acompanhamentos de escaladas são praticamente nulos. Aqueles que se dispuserem a dar uma olhada no site da Associação Internacional de Associações de Alpinismo podem ter uma breve idéia do que é segurança em alpinismo. A prática do alpinismo é muito sujeita a riscos que, em geral, são causados ou pelas forças naturais ou pelos próprios alpinistas.

As fatalidades no alpinismo que, em geral não são muitas, encontram a maioria de suas causas em avalanches e outros fenômenos naturais – eu mesmo já me vi em meio a uma tempestade de raios no Dedo de Deus – que no Brasil raramente ocorrem. Nós não possuímos picos nevados – sujeitos a deslizamentos – e a maioria de nossas vias é em pedra muito dura e, portanto, apta a oferecer as condições necessárias para a fixação de grampos e outros instrumentos de segurança (mesmo os móveis). A falha humana e, sobretudo, a prática do alpinismo por pessoas inabilitadas é que, nas condições brasileiras, têm gerado o maior número de vítimas fatais que, repito, é pequeno. Um outro fator, seguramente, é a falta de condições físicas para a prática do esporte. Recordo-me que em 1974 ou 75 pude presenciar no Parque Nacional da Serra dos Órgãos ao óbito de um senhor que se dirigia a Pedra do Sino (caminhada) e que foi fulminado por um enfarto em razão do esforço. É lógico que, nem o IBAMA, nem ninguém, tem condições de intervir no assunto.

É inteiramente fora da realidade do esporte se pretender que o Parque ofereça “segurança” aos praticantes do alpinismo. Infelizmente, a boa segurança em alpinismo só ocorre após os acidentes. Ela, a segurança, resume-se a uma boa estrutura de resgate e a um bom controle da ocupação das vias. Admite-se que uma boa grampeação, por exemplo, faça parte da segurança. Contudo, a prática internacional é no sentido de que as vias de escalada são da responsabilidade dos alpinistas e não dos parques. Até mesmo porque, dependendo do grau de dificuldade das vias, pouquíssimos escaladores são dotados de condições técnicas que os habilitem a escalá-las. A via dos italianos (Pão de Açúcar), por exemplo, é brincadeira para gente grande, pretender que o estado a mantenha em condições é, no mínimo, uma piada.

A prática do alpinismo no Brasil, tradicionalmente, é feita em Clubes Excursionistas, tais como o Centro Excursionista Brasileiro que, fundado em 1919 é o mais antigo da América Latina. Tais clubes seguem a tradição européia de prática do alpinismo em associações que, ao longo do tempo, vão desenvolvendo cursos, técnicas com vistas a tornar a prática do esporte mais segura. Já a tradição americana é da prática mais individual do alpinismo (rock climbing). Ainda que os praticantes do esporte, em sua ampla maioria, enfatizem a segurança, destacando-se neste quesito os equipamentos certificados pela UIAA. Seguramente, não é do interesse dos praticantes do alpinismo que o seu belo esporte seja enquadrado como um “serviço ambiental” prestado pelos parques e sujeito às regras do Código do Consumidor. Este seria mais um mico que pagaríamos no cenário internacional.

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