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Operação Euterpe

A lei diz que o Ibama tem uma função supletiva. Como ninguém sabe exatamente o que é isso, o órgão acaba metido em confusões, ou corrupção, por casos cuja alçada é dos estados.

6 de setembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Na semana passada, comemorou-se os 25 anos da Lei nº 6.938, de 1981 que, como todos sabemos, estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente e, concomitantemente, um grande esquema de corrupção, ativa e passiva, foi descoberto no IBAMA/RJ. O primeiro acontecimento é altamente alvissareiro, já o segundo é extremamente lamentável. No meu modo de ver, contudo, um está intimamente relacionado com o outro. E, do meu ponto de vista, é uma pena que não se aproveite ambos os episódios para refletir qual a relação que um guarda com o outro. Quanto ao esquema de corrupção, a matéria foi amplamente noticiada por este O ECO que, igualmente, não atentou para as questões fundamentais.

A Lei nº 6.938, de 1981 em seu artigo 10[1] estabelece que o IBAMA, como órgão ambiental, tem uma função supletiva em relação aos órgãos ambientais estaduais. Muito já se escreveu sobre o caráter supletivo da atuação do IBAMA, inclusive, eu mesmo já escrevi sobre o tema. A verdade, nua e crua, é que ninguém sabe o que quer dizer o supletivo contido na lei. Argumenta-se que supletiva é a atividade que, na ausência da agencia ambiental estadual, é exercida pelo governo federal mediante ação do IBAMA. Outros sustentam que, ante a competência legislativa concorrente e a competência administrativa comum – ambas previstas na Constituição Federal – os diferentes órgãos ambientais são dotados de atribuição para a fiscalização ambiental. Assim, argumentam, a adequada compreensão da competência supletiva é aquela que dota o IBAMA de um certo poder de “controle e fiscalização” sobre a atuação dos Estados. Este tipo de entendimento é fortalecido por constantes reivindicações de “federalização” de assuntos e temas diversos, haja vista que a “sociedade civil organizada” não confia nos órgãos ambientais locais. Na verdade, a competência supletiva é uma ambigüidade que, antes confunde do que esclarece e que revela um jeito muito comum de nossa vida legal. Aqui vale o bordão de nosso filósofo maior, Abelardo Barbosa: “Eu vim para confundir, não para explicar”. E na confusão, florescem os espertinhos e vigaristas.

Se analisarmos as acusações que pesam sobre os servidores do IBAMA colhidos pela chamada operação Euterpe, veremos que grande parte está relacionada com licenças ambientais de atividades que, em tese, são de competência dos órgãos estaduais. “Já no ramo da construção civil, os analistas ambientais responsáveis emitiam pareceres técnicos favoráveis a empreendimentos e loteamentos em zonas restritas de áreas de proteção ambiental (APAs) sob jurisdição federal e Áreas de Preservação Permanente (APPs). Este tipo de crime aconteceu mais na região metropolitana do Rio, como no caso de condomínios erguidos às margens das lagoas de Itaipu e Piratininga, em Niterói, e em Cabo Frio. Na Baixada Fluminense, um fiscal aceitou um apartamento em troca de um parecer. A polícia estima que alguns laudos técnicos chegaram a valer 100 mil reais. Esse tipo de crime derrubou o chefe em exercício do escritório regional do Ibama em Cabo Frio, Alípio Villanova do Nascimento. “Ora, francamente, condomínios em Itaipu e Piratininga são empreendimentos urbanos e, portanto, submetidos ao controle das prefeituras e da FEEMA; ocorre que, pela “supletividade” estabeleceu-se um caos normativo que, como todo caos, é prejudicial a todos, com exceção da turma do “jeitinho”. Tivéssemos um mecanismo com regras claras, metade dos problemas estariam resolvidos.

Aliás, é muito recorrente que o IBAMA aplique multas ambientais, em valores quase sempre extremamente significativos, em atividades que, em tese são submetidas ao licenciamento ambiental estadual. É evidente que o elevado grau de discricionariedade do conceito de competência supletiva é um forte estímulo para que indivíduos inescrupulosos, valendo-se da condição de servidor público federal, passem a exigir valores para a elaboração de laudos, emissão de pareceres e tantas outras questões que, inobstante a legislação vigente determinar sejam estaduais, permanecem em uma área cinza denominada competência supletiva.

Releva notar que nenhuma das regulamentações da Lei nº 6.938/81 enfrentou a questão da chamada competência supletiva. Não há, contudo, nada absurdo na questão. Ao contrário, a lógica centralizadora é a razão para que assim seja. Definir o que se entende por competência supletiva é, na prática, limitar os poderes de atuação do órgão federal e prestigiar a descentralização e, por conseqüência, o federalismo. Do meu ponto de vista, não é possível que um órgão público, como o IBAMA, seja um “antro de corrupção” como as freqüentes operações policiais aparentemente demonstram. Penso que existem elementos mais profundos que precisam ser enfrentados de forma estrutural e não meramente episódica ou policial. A primeira medida necessária é a descentralização administrativa do controle ambiental.

Seria muito conveniente que o IBAMA realizasse uma análise das multas expedidas pelo órgão no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, com vistas a identificar aquelas que, de fato, estão compreendidas nas competências do órgão federal. No puro palpite, posso arriscar que o resultado seria surpreendente.

A Lei 6.938/81, com a ambigüidade que lhe é característica, é um instrumento de centralização administrativa, muito embora revestida de uma retórica descentralizadora[2]. No artigo 8º da mencionada lei, tantas vezes alterado, manteve-se, em plena Constituição de 1988, o conceito de que o órgão federal de meio ambiente supervisiona o licenciamento estadual. Também no artigo 11, no qual se trata de controle de poluição industrial, o tema da fiscalização supletiva é retomado[3], agora no que se refere a normas e padrões.

O Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, em seu artigo 21 [4] não contribui para esclarecer o conceito de competência supletiva, mantendo as ambigüidades existentes no texto legal. Como se vê, o caráter centralizador da Política Nacional do Meio Ambiente é, seguramente, um importante elemento que, conjuntamente com outros, contribui para episódios lamentáveis como o revelado pela chamada operação Euterpe.

[1] Art.10 – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis………………………………….. § 3 – O órgão estadual do meio ambiente e o IBAMA, este em caráter supletivo, poderão, se necessário e sem prejuízo das penalidades pecuniárias cabíveis, determinar a redução das atividades geradoras de poluição, para manter as emissões gasosas, os efluentes líquidos e os resíduos sólidos dentro das condições e limites estipulados no licenciamento concedido. § 4 – Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA o licenciamento previsto no caput deste artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional.
[2] Art. 8º Compete ao CONAMA: I – estabelecer, mediante proposta da SEMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pela SEMA
[3] Art. 11. Compete à SEMA propor ao CONAMA normas e padrões para implantação, acompanhamento e fiscalização do licenciamento previsto no artigo anterior, além das que forem oriundas do próprio CONAMA. § 1º A fiscalização e o controle da aplicação de critérios, normas e padrões de qualidade ambiental serão exercidos pela SEMA, em caráter supletivo da atuação do órgão estadual e municipal competentes
[4] Art. 21. Compete à Semam/PR propor ao Conama a expedição de normas gerais para implantação e fiscalização do licenciamento previsto neste decreto. 1º A fiscalização e o controle da aplicação de critérios, normas e padrões de qualidade ambiental serão exercidos pelo Ibama, em caráter supletivo à atuação dos Órgãos Seccionais Estaduais e dos Órgãos Locais. 2º Inclui-se na competência supletiva do Ibama a análise prévia de projetos, de entidades públicas ou privadas, que interessem à conservação ou à recuperação dos recursos ambientais.

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