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Cuidado com a precaução

No Brasil, confunde-se princípio de precaução com paralise. O recurso, que deveria evitar riscos, já está banalizado diante de tantos usos descabidos.

28 de abril de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Começo esta coluna pedindo perdão aos leitores por retomar um tema batido e, até mesmo, sem graça: o Princípio da Precaução (PP). Entretanto, não consigo deixar de abordá-lo de vez em quando. É algo mais forte do que a minha vontade, tantas vezes ele tem sido invocado em vão. Aqueles que gostam de navegar na internet têm uma ótima oportunidade de examinar mais um dos milhares de textos que escritos sobre o princípio da precaução.

Refiro-me ao documento The Precautionary Principle elaborado pelo COMEST, que é a comissão sobre ética do conhecimento científico e tecnologia da Unesco. Trata-se de um documento bastante amplo e com uma excelente informação, cuja leitura recomendo fortemente. O primeiro ponto relevante do documento é demonstrar que não existe um consenso internacional quanto ao significado do princípio. Entretanto, as diferentes visões sobre o problema possuem alguns pontos em comum. Dentre os quais podemos destacar: “A total ban may not be a proportional response to a potential risk in all cases.” E para aqueles que são princípio da precaução freaks, nada melhor do que um site somente a ele dedicado.

O que me chamou mais a atenção foi a parte do documento denominada “What the PP is not”: “To avoid misunderstandings and confusions, it is useful to elaborate on what the PP is not. The PP is not based on ‘zero risks’ but aims to achieve lower or more acceptable risks or hazards. It is not based on anxiety or emotion, but is a rational decision rule, based in ethics, that aims to use the best of the ‘systems sciences’ of complex processes to make wiser decisions. Finally, like any other principle, the PP in itself is not a decision algorithm and thus cannot guarantee consistency between cases. Just as in legal court cases, each case will be somewhat different, having its own facts, uncertainties, circumstances, and decision-makers, and the element of judgment cannot be eliminated.” O material é importante, visto que o princípio da precaução não tem por objeto que se espere para tomar uma medida, até que o risco nela implicado seja igual a zero. Infelizmente, muitas vezes o princípio da precaução é confundido com o princípio da inação.

Parece-me bastante razoável entender que o PP é um instrumento de análise a ser implementado caso a caso, em função de situações que se revelem concretamente. Em nosso país, o princípio da precaução tem adquirido o status de uma super norma, que prevalece sobre qualquer circunstância, sempre que um determinado empreendimento desagrada a algum grupo ou está em estágio tecnológico mais avançado do que a média. Em tais hipóteses, tudo deve ser paralisado para que se atinja a um grau de “certeza científica” capaz de garantir que o empreendimento não causará “dano ambiental”.

Desinformação

Toda esta confusão decorre de uma baixa capacidade institucional de nossos órgãos ambientais e de uma desinformação crônica de boa parte das pessoas que, legitimamente, buscam proteger o meio ambiente. Modestamente, vamos tentando disseminar alguma informação com vistas a elevar o nível do debate e evitar prejuízos econômicos, ambientais, sociais e institucionais.

O grau de abstração e, até mesmo, de devaneio que o princípio da precaução atingiu tem feito com que várias instituições se preocupem com uma maneira de dar-lhe mais concretude. Assim, algumas diretrizes para a sua aplicação têm sido formuladas Aqui vão algumas delas: (i) avaliar riscos ambientais em relação a riscos sócio-econômicos, (ii) avaliar os riscos da ação em relação aos da inação, (iii) avaliar os riscos de curto prazo em relação aos riscos de longo prazo, (iv) avaliar como os órgãos ambientais e outros compreendem o princípio, (v) avaliar o conhecimento técnico sobre a gestão de riscos, (vi) avaliar as implicações da precaução para a governabilidade, considerando as partes que serão mais afetadas pela atividade pretendida, (vii) considerar as exigências de monitoramento e pesquisas, sem a necessária capacidade técnica e financeira para implementá-los, (viii) operacionalizar a precaução através das instituições locais e do gerenciamento, (ix) considerar as relações entre o princípio da precaução e a gestão flexível e adaptável aos riscos, (x) considerar a necessidade de estabelecer normas legais baseadas no princípio.

Uma questão relevante e que não pode deixar de ser formulada é: qual o papel que o princípio da precaução pode ter em um país que busca o desenvolvimento? Em um país que precisa superar suas mazelas sociais e manter uma boa qualidade ambiental? Isto não tem ficado muito claro.

Falando qualquer coisa

O princípio da precaução tem exercido um verdadeiro efeito de “manada” sobre as diversas sociedades. Com isto quero dizer que, basta alguém alegar que em determinada circunstância é necessário “precaução” para que todos passem a repetir o mote sem saber muito bem do que se está falando. O princípio da precaução é cada vez mais prestigiado pelos tribunais brasileiros, servindo de base para um crescente número de decisões judiciais.

O princípio da precaução, em leitura singela, indica que medidas devem ser tomadas para que riscos sejam evitados, conforme as sábias lições do Conselheiro Acácio. A questão é: “quais riscos evitar?” Seguramente, o princípio quando aplicado aos casos concretos, evita alguns riscos e não evita outros. Assim, é necessário que a sociedade defina qual a escala de riscos que ela julga devam ser evitados e quais aqueles que ela deseja correr.

Não é necessário dizer que, em linhas gerais, essa ponderação é feita com base em análise de custo-benefício. As maiores ou menores medidas de precaução são adotadas em função da possibilidade dos danos realmente ocorrerem, da probabilidade e de fatores diversos que fazem com que temamos mais ou menos um determinado tipo de risco. Grande parte da percepção do risco é, sem dúvida, devida à informação que possuímos sobre determinado tema, da nossa necessidade concreta de tomar esta ou aquela decisão e de um ambiente favorável ou desfavorável à medida pretendida ou sugerida. Advirta-se que, nem sempre, a percepção do risco corresponde ao risco real. Vejam-se as estatísticas de acidentes de automóvel em comparação com as de acidentes aéreos.

Riscos

Em nossa vida diária buscamos evitar os riscos conhecidos, muito embora não vivamos como “Ubaldo, o paranóico”, tentando evitar os riscos desconhecidos – ou as surpresas. Evitamos andar em locais cujo índice de criminalidade é elevado, muito embora não demonstremos preocupação ao caminharmos no Jardim Botânico. A segunda hipótese indica uma preocupação desnecessária. Admitimos que algo possa ocorrer, todavia a probabilidade é de tal maneira remota que não chega a justificar uma preocupação real. As balas perdidas são motivos suficientes para que não saiamos de casa? Seguramente não.

À mesma lógica deve presidir a aplicação do chamado princípio da precaução. Se é que estamos falando do princípio como medida racional para evitar danos possíveis e prováveis. Não se pode esquecer, também, o papel que o princípio exerce como um elemento relevante na guerra comercial entre empresas e países. O Tribunal de Justiça da União Européia, por diversas vezes, tem enfrentado a questão da aplicação do PP. Como se verá, nem sempre existe uma concordância quanto a seu significado e interpretação: “Embora as instituições comunitárias possam, no âmbito da Directiva 70/524, adoptar uma medida fundada no princípio da precaução, as partes não estão aqui todavia de acordo sobre a interpretação deste princípio e sobre a questão de saber se as instituições comunitárias o aplicaram correctamente no caso vertente.

Isso significa que, mesmo onde ele é expressamente admitido como uma fonte de direito, a questão é problemática. Aliás, mesmo na Europa não há uma definição consensual quanto ao significado do PP: “Nem o Tratado nem o direito derivado aplicável ao caso sub judice contêm qualquer definição do princípio da precaução”.

Os riscos, como definido pelo Tribunal, não podem ser meras alegações terroristas e sem qualquer fundamento:

“Do mesmo modo, no contexto da aplicação do princípio da precaução, que corresponda por hipótese a uma situação de incerteza específica, não se pode exigir que uma avaliação dos riscos forneça obrigatoriamente às instituições comunitárias provas científicas concludentes da realidade do risco e da gravidade dos efeitos adversos potenciais em caso de efectivação deste risco (v., neste contexto, acórdão Mondiet, já referido no n.° 136 supra, n.os 29 a 31, e Espanha/Conselho, já referido no n.° 136 supra, n.° 31).

Todavia, resulta igualmente da jurisprudência já referida no n° 152 supra que uma medida preventiva não pode ser validamente fundamentada por uma abordagem puramente hipotética do risco, assente em meras suposições ainda não cientificamente verificadas (v., neste sentido, igualmente, acórdão EFTA-Surveillance Authority/Norway, já referido no n° 136 supra, nomeadamente n.os 36 a 38).

Resulta pelo contrário do princípio da precaução, como interpretado pelo juiz comunitário, que uma medida preventiva só pode ser tomada se o risco, sem que a sua existência e o seu alcance tenham sido demonstrados plenamente por dados científicos concludentes, estiver, no entanto, suficientemente documentado com base nos dados científicos existentes no momento da tomada desta medida.

A tomada de medidas, mesmo preventivas, com base numa abordagem puramente hipotética do risco, seria tanto mais inadequada num domínio como o caso em apreço. Com efeito, neste domínio, e as partes estão de acordo, não pode existir um nível de «risco zero», na medida em que não pode ser cientificamente provada a ausência total do menor risco actual ou futuro relacionado com a adição de antibióticos nos alimentos para animais. Aliás, tal abordagem seria aqui ainda menos adequada porque a legislação já prevê, como uma das expressões possíveis do princípio da precaução, um procedimento de autorização prévia dos produtos em causa (v., quanto a obrigações processuais específicas no contexto de tal autorização prévia, acórdão Greenpeace France e o., já referido no n.° 136 supra, n.° 44).

Assim, o princípio da precaução só pode ser aplicado em situações de risco, nomeadamente para a saúde humana, que, sem se fundar em meras hipóteses cientificamente não verificadas, não pôde ser ainda plenamente demonstrado.

Nesse contexto, o conceito de “risco” corresponde, portanto, a uma função da probabilidade dos efeitos adversos para o bem protegido pela ordem jurídica em razão da utilização de um produto ou de um método. O conceito de “perigo” é, aqui, utilizado comummente num sentido mais amplo e descreve qualquer produto ou método que possa ter um efeito adverso para a saúde humana (v., a este respeito, a nível internacional, a comunicação provisória da Comissão do Codex Alimentarius da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e da Agricultura e da OMS, CX 2/20, CL 1996/21-GEN, Junho de 1996).

Aqui no Brasil, o PP tem sido esgrimido como um elemento muito mais para paralisar atividades do que para evitar danos reais. Por outro lado, existe uma verdadeira banalização de sua utilização. Em nome do princípio da precaução, chega-se a postular judicialmente que um determinado órgão ambiental faça o licenciamento de uma atividade ou outra. Enfim, sejamos precavidos com o princípio da precaução para não comprarmos gato por lebre.

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