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Feiúra agora no Rio é caso de britadeira

A demolição da Passarela de Ipanema abre um precedente no Rio de Janeiro para derrubar o que é feio. Parece a receita ideal para fazer um parque nacional em vez da cidade.

3 de setembro de 2009 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A demolição da passarela de Ipanema, num ensolarado domingo de inverno, foi uma dessas festas tipicamente cariocas que tanto podem não ser nada como, por descuido, virar revolução.

O finado trambolho cruzava pelo alto a rua Visconde de Pirajá, na altura do Bar Vinte, o ponto onde em outros tempos o bonde fazia a volta no bairro. Era um viaduto para pedestres com veleidades decorativas. Mas há muito tempo não ligava uma calçada à outra. Logo depois de sua inauguração, 13 anos atrás, os vizinhos passaram a se queixar dos pedestres que, aproveitando a volta por cima, davam uma espiada na vida alheia, pelas janelas dos apartamentos.

Opinião pública

Interdidato por ser indiscreto, ele começou a enfrentar críticas por inútil. E inútil ele era. Mas a prefeitura derrubou-o porque, além de inútil, era feio. Foi portanto uma vitória inédita da opinião pública contra a feiúra urbana. E a presidente local da associação dos moradores chegou a dizer que “o Rio amanheceu cantando” – como se já estivesse no ar a Marselhesa do Bota-Abaixo, conclamando “às britadeiras, cidadãos”.

E um líder comunitário do Leme, que é outro bairro, aproveitou o oba-oba para anunciar que o próximo alvo será a Cidade da Música, na Barra da Tijuca. Sem contar que uma barraca improvisada aproveitou o movimento cívico em torno dos escombros para vender os cacos de concreto da Passarela como suvenir.

Não é nada, não é nada, pode ser assim que começam as autênticas revoluções. A francesa, por exemplo. Ela derrubou a Bastilha quando, por trás de seus muros anacrônicos, só havia sete gatos pingados, todos presos comuns. Mas, posta no chão, a fortaleza decrépita virou símbolo da ordem despótica. E acabou, como acontece agora com a Passarela de Ipanema, vendida em blocos de pedra, como relíquias do absolutismo deposto.

No caso, por obra e graça de um oportunista que passou de fininho pela história, fazendo bons negócios – o rico construtor Pierre-François Palloy, que se encargou da demolição como decano do moderno marketing político.

Lá, foi a Bastilha. Aqui, por que não poderia ser a Passarela? A revolução carioca até leva uma vantagem na saída, porque parte de uma idéia mais bombástica que a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Acabar com a feiúra é muito mais radical, se o povo resolver daqui para a frente levar a palavra da prefeitura ao pé da letra.

Agora que as britadeiras se erguem oficialmente contra os erros arquitetônicos que estragam  beleza natural da cidade, Ipanema que se cuide. Até seus moradores, vitoriosos na batalha contra a Passarela, triam daqui para a frente bons motivos para olhar as fachadas de seus prédios com apreensão. Há muito o que desfazer no bairro, na hora de corrigir a martelete hidráulico o que a especulação imobiliária veio enfeando ao longo de mais de um século, em parceria com a imprudência urbanística.

Bonito mesmo era o areal que abraçava a Praia Grande da Restinga, antes que o Barão de Ipanema resolvesse loteá-lo em 1894. Ipanema não passa de suas sobras. E por que a revolução haveria de se contentar com Ipanema, se o Rio de Janeiro todo está meio soterrado em 444 anos de descuidos?

Diante das barreiras naturais de granito, água e selva de sua paisagem que emparedavam seu crescinento, a cidade já nasceu como um lamentável equívoco urbanístico, como explica, por A mais B, o historiador Nireu Cavalcanti, no livro O Rio de Janeiro Setecentista. Aliás, seus fundadores, Estácio de Sá e seu tio, o governador Mem de Sá, sabiam tão bem o que estavam fundando, que lançaram o marco inaugural do povoamento em lugares diferentes, com apenas dois anos de diferença um do outro.

O segundo núcleo inaugural também não dá para chamar de definitivo. Ficava no morro do Castelo – e o morro do Castelo sumiu há décadas, e hoje jaz, em parte, no fundo da lagoa Rodrigo de Freitas. A cidade sempre foi assim, perdulária. Desde os primeiros passos, só teve um lado sobre o qual poderia avançar – o das montanhas que escarificou, dos rios que canalizou, das lagoas que se transformaram em praças no centro histórico e das praias que desapareceram. Nas reformas da administração do prefeito Pereira Passos, por exemplo, sumiram praias às dúzias.

Não falta na cidade o que restaurar. E, se a revolução iniciada domingo pelo povo de Ipanema for mesmo às últimas conseqüências, o Rio de Janeiro talvez possa ser um dia o parque nacional que deveria ter sido desde o início. Aí sim, seria o melhor do mundo.

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