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“Rogai por nós”, uma oração em forma de planta

Não se sabe exatamente de onde vem o seu nome, mas suas características fazem pensar que ela tem um pacto com anjos e demônios.

10 de março de 2014 · 10 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

 

A curta e vibrante floração da "rogai por nós". Fotos: Marc Dourojeanni
A curta e vibrante floração da "rogai por nós". Fotos: Marc Dourojeanni

O título desta coluna faz pensar na situação internacional atual, frente à possibilidade de uma nova guerra na historicamente torturada Crimeia, além da prolongada situação trágica dos venezuelanos, dos norte-coreanos e dos sírios, oprimidos por ditaduras irracionais. Também vale essa frase para os brasileiros que sofrem da progressão geométrica de crimes cada vez mais truculentos e da manifesta incapacidade de o Estado impor a lei. E isso sem falar de outras ameaças à segurança das pessoas. Mas agora falo de outro assunto. Falo da planta que por misteriosa razão se conhece no Brasil como “ora-pro-nobis” que, em latim, significa “rogai por nós”.

Não há muito de novo a dizer sobre esta curiosa planta que não esteja dito e redito na sempre atenta e prolífica Internet, em especial naqueles sítios que chamam de “Doutor Google” e de “Wikipédia”. Mas sendo proprietário de uma dessas plantas, que já adquiriu proporções enormes, e tendo constatado que nem são tantos os que a conhecem, achei interessante falar um pouco dela nestas páginas por três motivos: (i) seu esquisito nome brasileiro; (ii) suas caraterísticas biológicas que a colocam entre os anjos e os demônios e; (iii) seu valor alimentício e curativo que parece considerável e que é muito desperdiçado.

Detalhe da flor.
Detalhe da flor.

Dizem que o nome “ora-pro-nobis” está relacionado ao fato de que essa planta é -ou era- comum nos cemitérios descuidados, em especial ao redor das igrejas de Minas Gerais. Supõe-se que algum usuário impressionado por essa oração comum nesses lares teria gerado o nome da planta que, também recebe outros nomes como, por exemplo, “lobrobó”. O seu nome científico é Pereskia aculeata, e em países de fala inglesa é usualmente conhecida como groselha autóctone (gooseberry), pela sua similaridade com esta planta.

Como se verá a planta tem grandes virtudes, sendo suas folhas, flores e frutos muito nutritivos e comestíveis em inúmeras formas e, além disso, a sua brevíssima floração é de extraordinária beleza. Durante a floração ela abastece milhares de abelhas atraídas pelo perfume das flores e a abundância de pólen. Mas, tanta generosidade e beleza, seu lado angelical, estão protegidas pela mais diabólica parafernália espinhosa que se possa imaginar. E, diga-se de passagem, embora não se tenha registro disso na América a “ora-pro-nobis” é uma seríssima praga na província de Natal, na África do Sul, onde consegue asfixiar e destruir florestas nativas sem que até o presente se consiga erradicá-la ou controlá-la. Cresce rapidamente, na sombra ou no sol; adapta-se a solos pobres e se dispersa de várias formas. Nessa região, a “ora-pro-nobis” só mostra sua face má.

Espinhos implacáveis.
Espinhos implacáveis.

Se não fosse pelos espinhos, extremamente agressivos e eficientes para arrancar a pele dos humanos, bem distribuídos no talo e nos galhos, essa planta se parece com um arbusto qualquer e não o que realmente é, ou seja, um cacto. A Pereskia aculeata é um cacto primitivo, desses que ainda têm folhas como qualquer planta e que ainda não desenvolveu essas folhas suculentas da tuna, nem adquiriu ainda a forma rechonchuda ou cônica que são clássicas das cactáceas. Há vàrias espécies e subespécies de Pereskia que, como quase todas as cactáceas são nativas da América. Encontra-se desde a Flórida, nos EUA, até a Argentina e este gênero é particularmente comum no Caribe, em especial nas Antilhas, o que pode fazer pensar que seu centro de origem seja nessas ilhas, o que diga-se de passagem também seria o caso da bem conhecida acerola (Malpighia emarginata). A “ora-pro-nobis” não parece ser comum na região andina, mas, pelo menos existe uma citação que a localiza também na Amazônia peruana. Em nossas frequentes viagens de campo pelos diversos biomas brasileiros nunca vimos esta planta no mato, embora se informe que isto aconteça. Sempre a localizamos em cercas de chácaras ou em terrenos abandonados, quer dizer, em locais fortemente antropizados.

Como alimento a “ora-pro-nobis” pode ser consumida sem risco nenhum quer seja in natura, cozida ou seca, ou em farinha. É excelente em saladas frescas, pois além de saborosas as folhas são ricas em mucilagem contribuindo para o bom funcionamento do intestino. Substitui com vantagens o espinafre ou a acelga em panquecas e combina bem refogada com carne, frango ou ovos, neste caso na forma de omeletes ou com feijão e numa variedade de sopas e ensopados. Também se usa para fazer tortas. É um vegetal rico em ferro e ajuda a curar anemias graves. Tem uma elevada porcentagem de proteína digerível ademais de vitaminas A, B e C assim como cálcio e fósforo, pelo que ganhou o apelido de “carne de pobres”. Assim mesmo parece ser rica em triptofano, que é um aminoácido precursor da serotonina. É servida cotidianamente nas cidades históricas do estado de Minas Gerais — Tiradentes, por exemplo — onde a planta é mais popular. Até existe, na histórica cidade de Sabará, um festival do “ora-pro-nobis”. Como é usual com plantas bem conhecidas, a lista dos efeitos benéficos para a saúde desta planta é comprida. Usa-se como cicatrizante, anti-inflamatório, anticoncepcional e antitumoral. Os frutos seriam expectorantes e até antissifilíticos. Existem estudos científicos que confirmam várias dessas virtudes.

A floração é súbita e termina em dois dias.
A floração é súbita e termina em dois dias.

Seu ciclo de vida é marcado pelo caráter violento, súbito e simultâneo da sua floração. Nenhum dos milhares de botões florais se atrasa para a festa a que são convidados todos os insetos que procuram pólen, principalmente as abelhas. De fato, o principal aviso do evento é o zumbido desses insetos. Quando isso ocorre é impossível ver as folhas todas escondidas pelas flores brancas. Outra característica dessa floração é a sua brevidade. As flores, nos três últimos anos, abriram-se apenas dois dias, após copiosa chuva. Abriram muito cedo, com a aparição do sol e fecharam antes do meio dia. No terceiro dia estavam todas murchas. Logo, continuando o ciclo, aparecem os frutos que, para dizer verdade, não são muito apetitosos.

Nenhuma referência, nem sequer daquelas que pregoam que esse será o alimento do futuro da humanidade, diz como se recolhem as folhas sem se ferir. Uma fonte, um pouco menos entusiasta que as demais, explica que devem se usar luvas de couro. Tentamos cortar folhas desse modo e não foi nada fácil. Da nossa experiência, a melhor forma é cortar as folhas bem na base com tesoura e se isso pode ser feito usando luvas, melhor. O propósito de promover o uso massivo de “ora-pro-nobis” para alimentação deve passar pela invenção de uma máquina de colheita apropriada ou pela modificação genética da planta, para dispor de uma variedade sem espinhos. Ambas as possibilidades parecem remotas. Assim sendo consumir essa planta continuará requerendo de paciência angelical no momento da colheita.

De qualquer modo é uma planta notável que merece ser bem mais conhecida e, concordando com os seus promotores, muito mais consumida, pois, acima de suas qualidades alimentícias, ela é realmente deliciosa.

 

 

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Comentários 1

  1. SIEGBERTO KLEIN diz:

    Boa tarde.
    Minha esposa ganhou uma pequena muda de um médico, que não sabia o que fazer com ela. Apenas que as folhas são comestíveis.
    Transplantei numa lata de 18 litros, com terra adubada, a deixei à meia sombra. Agora com as chuvas e primavera está se desenvolvendo muito bem. Pretendo deixá-la na lata, porém expor mais ao sol. Vamos usár como saladas.