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Cientistas malucos

Pesquisadores sem bom senso existem, isso não é novidade. Mas concluir que áreas protegidas fazem mal a preservação é passar da conta.

2 de agosto de 2011 · 13 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Que os cientistas malucos existem não é novidade. Eles não são apenas ciência ficção. Estão por toda a parte e nem sempre as suas descobertas são importantes ou úteis. Muitas vezes fazem muito dano à humanidade e às causas nobres. Sem falar dos que se deleitam inventando máquinas letais. Já teve, ainda, quem “descobrisse” que conservar a vegetação das bacias hidrográficas não ajuda a dispor de água, nem de água boa e; também, que a espécie humana é benfeitora da natureza. Agora, uns dias atrás, dois cientistas soltaram a bombástica notícia de que as áreas protegidas não servem para conservar a diversidade biológica e que é necessário instrumentos diferentes.

Camilo Mora e Peter Sale, da Universidade do Havaí, são conceituados cientistas marinhos, mas, na sua apreciação sobre as áreas protegidas falaram também das que são terrestres. No artigo “Ongoing global biodiversity loss and the need to move beyond protected areas: a review of the technical and practical shortcomings of protected areas on land and sea” (“Perdas atuais de biodiversidade e a necessidade de se fazer mais que áreas protegidas: uma revisão dos problemas técnicos e práticos das áreas protegidas em terra e mar”) publicado neste ano na revista Marine Ecology Progress Series (434: 251-266) os autores documentam sisudamente as brechas atuais do sistema mundial de unidades de conservação. Em sua análise não descobriram coisa alguma que não seja bem conhecido e já documentado como o fato de que, apesar das unidades de conservação, muitas espécies têm as suas populações em franco declínio, e que a perda da biodiversidade mundial aumentou, prevendo uma situação que pode ser catastrófica no ano 2050.

O fato novo é que sem muito dissimulo acusam as áreas protegidas pela situação. Reiteram que o sistema de áreas protegidas está incompleto e que as áreas protegidas existentes estão mal cuidadas e assim, em consequência, não cumprem a sua função de conservar amostras representativas da diversidade biológica, nem asseguram a sua sobrevivência. Consultam uma centena ou mais de publicações que dizem a mesma coisa, ou seja, que devido ao descaso da população e dos políticos, especialmente nos países ainda não plenamente desenvolvidos, as áreas protegidas em grande medida são “para inglês ver”, ou seja, que por falta de prioridade orçamentária, a maioria não cumpre as funções para as quais foram estabelecidas.

Até este ponto, embora redundante, o artigo não faz dano, exceto pela contundente declaração de que as áreas protegidas “não servem”. Com efeito, Carlos Mora, o autor principal, declarou à imprensa que “estamos investindo uma grande quantidade de recursos financeiros e humanos na criação de áreas protegidas e infelizmente a evidência existente sugere que essa não é a solução mais efetiva”. O que se espera, neste ponto, é saber quais são as alternativas de soluções mais efetivas que os autores propõem para substituir as áreas protegidas. E, para surpresa do leitor ansioso, a resposta que eles oferecem é: (i) estabilizar o tamanho da população humana mundial e, (ii) reduzir a pressão e as demandas humanas sobre a biodiversidade e seus serviços.

Acaso os autores acreditam que os que se interessam pela conservação da biodiversidade não sabem que a melhor forma teórica de defendê-la é reduzir o tamanho da população mundial e equilibrar o consumo humano com a capacidade de regeneração dos recursos naturais disponíveis? Acaso esqueceram que disso trata também o desenvolvimento sustentável? Desde as antigas propostas do Clube de Roma até a atualidade, passando pela Comissão Bruntländ e a Eco 1992, todo mundo e todo texto básico de ecologia repete isso mesmo. Esta seria a solução dos problemas humanos e dos da vida que acompanha os humanos no planeta Terra. Mas como todo mundo também sabe isso está longe de ser uma alternativa viável.

De outra parte certamente é bem conhecido que as áreas protegidas são apenas um paliativo ao problema da redução e extinção da diversidade biológica. Mas tampouco existe dúvida de que sem elas a situação seria infinitamente pior. O que acontece é que os autores parecem não saber que qualquer alternativa a elas é mais difícil e, portanto mais improvável de ser realizada. Esperar que a população mundial se estabilize sem controle de natalidade, significa de fato perder ainda mais áreas naturais, sejam elas protegidas ou não, pois faltam muitas décadas para que isso aconteça. Pretender um verdadeiro desenvolvimento sustentável é uma utopia que implica, na prática, em quase não crescer economicamente e atingir níveis de equidade social sem precedentes na história humana. Tudo isso é desejável, porém é irrealizável em um lapso tão curto como seria necessário para salvar boa parte da diversidade biológica.

Portanto a única opção disponível, apesar de suas falhas, apesar da sua baixa prioridade para os governos e para a população em geral, apesar de todos os seus problemas, são as áreas protegidas ou unidades de conservação. Elas, de todas as alternativas para conservar a biodiversidade ou, pelo menos, para dar-lhe uma sobrevida, são reconhecidamente as mais factíveis em termos econômicos, sociais e ambientais. Os autores, nadando em suas teorias, esqueceram-se de dizer que a maior parte das áreas protegidas do planeta não são realmente protegidas. O socioambientalismo e outras tendências baseadas na teoria de que os humanos beneficiam a natureza forçaram as suas portas permitindo que nelas se implantem todas ou muitas das atividades econômicas destrutivas, que também se desenvolvem fora delas. Ou seja, antes de propalar irresponsavelmente que as áreas protegidas não servem, eles deveriam fazer melhor o seu dever de casa além de ser honestos nas suas extrapolações.

É evidente que estes cientistas, como tantos outros, em procura de fama atrelaram ao seu estudo uma série de conclusões que têm pouco a ver com a pesquisa feita. Demonstrar que a biodiversidade tem os dias contados e que as áreas protegidas, por falta de suporte, não conseguem evitar completamente que isso aconteça, embora não seja novo, pode até ser útil. A recomendação lógica para enfrentar esse problema, que é real, seria demandar maior apoio para as unidades de conservação. Outra coisa muito diferente é concluir e propalar, sem fundamentar com fatos, a noção de que as áreas protegidas não servem para conservar a biodiversidade e que, em troca é necessário limitar a população mundial e inventar um novo estilo de desenvolvimento. Isso é fomentar que os já abundantes inimigos das unidades de conservação façam uma festa e digam que até os cientistas apoiam a sua eliminação. Os cientistas têm o dever de ser cuidadosos com o que escrevem e evitar cair na tentação de fazer demagogia. Que deixem isso para os políticos.

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