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Gabriel, o bispo e os tubarões

Foi uma surpresa que um bispo sem qualificações para ministro da pesca fizesse algo para minorar o genocídio que sofrem os tubarões.

7 de janeiro de 2013 · 11 anos atrás
  • José Truda Palazzo, Jr.

    José Truda é jardineiro, escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais, e indignado.

Não seria surpresa para ninguém saber que eu me juntei ao coro de milhares de brasileiros com mais de dois neurônios que ficaram enfurecidos pela nomeação de um bispo evangélico para Ministro da Pesca e Aquicultura no des-governo corrente, que distribui cargos a mancheias para os grupelhos partidários sem qualquer consideração à capacidade técnica ou mesmo um mínimo de avaliação da ficha policial do apaniguado em tela.

Surpresa será, entretanto, ver-me escrever que estou lavando a boca com sabão no que tange ao desempenho de Marcelo Crivella como titular do MPA, ao menos em algumas áreas significativas da gestão desse caso de polícia que é a pesca no Brasil – melhor dito, a mineração da biodiversidade marinha pelas máfias que dela se apropriam em detrimento do interesse nacional. Explico, por necessário, por que é que o bispo talvez seja a melhor surpresa ambiental do des-governo Lulla Roussef.

Dentre as muitas obscenidades ambientais que caracterizam a pesca marinha contemporânea, talvez a mais gritante e emblemática de seu potencial destrutivo seja o genocídio global dos tubarões. Durante mais de trinta anos dediquei minha vida à conservação das baleias e golfinhos; mas apenas há três fui descobrir, convidado por uma grande fundação internacional a somar-me aos esforços pela defesa desses peixes, que havia coisa muito pior do que a caça à baleia acontecendo bem debaixo de nossos narizes. Com efeito, o que o massacre de baleias representou em desequilíbrio ecológico e apropriação indevida da biodiversidade alheia por uns poucos países poderosos nos séculos XIX e XX, a mineração dos tubarões está sendo no século XXI, e os resultados serão igualmente desastrosos se não houver, como aconteceu no caso das baleias, uma mobilização poderosa das sociedades conscientes contra esse absurdo.

Nós temos – nós todos, inclusive quem se acha ambientalmente consciente – uma visão profundamente errada de que “peixe” é algo extremamente abundante e com uma biologia mais ou menos uniforme e taxas generosas de reprodução. Ao comermos placidamente nosso sushi enquanto torcemos o nariz para a carne vermelha (eu não, que sou carnívoro assumido), nos auto-confortamos com a visão utópica de milhares de ovos de peixes sendo espalhados no mar e eclodindo para alimentar a “pesca sustentável” que a máfia da pesca industrial propagandeia enquanto devasta tudo que se move. Na verdade, os peixes mais procurados pelo mercado, como os atuns, não se reproduzem como sardinhas – o ameaçadíssimo bluefin ou atum-vermelho, menina dos olhos de 10 entre 10 traficantes japoneses de pescado de espécies ameaçadas, levam em torno de oito a onze anos para atingir a maturidade sexual, têm uma taxa de sobrevivência muito pequena se comparada a outras espécies, e estão tendo seu tamanho quando adultos reduzido violentamente pelas capturas dos exemplares maiores, mais aptos a reproduzir, para satisfazer o pornográfico leilão matinal de atuns do mercado de peixes de Tóquio.

Declínio massivo

“Quando falamos no desaparecimento dos tubarões, estamos falando na degradação bestial dos ambientes marinhos onde eles se inserem. “

No caso dos tubarões e arraias, sua história natural os faz do ponto de vista reprodutivo tão vulneráveis à superexplotação como os mamíferos marinhos. Muitas espécies apenas atingem a madurez sexual após vários anos, produzindo apenas umas poucas crias, em intervalos que podem ser de mais de um ano. Essa vulnerabilidade está expressa de forma clara e brutal nas estatísticas pesqueiras, que mostram para espécies como o tubarão-martelo declínios de até 90% em várias populações atingidas pela pesca, inclusive as do Brasil. A recuperação, em muitos casos, é mínima mesmo quando se elimina finalmente a pesca, porque sobram pouquíssimos indivíduos reprodutivos para efetivar o repovoamento.

Quando falamos no desaparecimento dos tubarões, estamos falando na degradação bestial dos ambientes marinhos onde eles se inserem. Esses predadores de topo de cadeia são absolutamente essenciais ao equilíbrio ecológico marinho, e estudos científicos vêm comprovando que a remoção dos tubarões em massa e, portanto, de suas funções de predação e controle sobre várias outras espécies das teias ecológicas dos oceanos, causa dano severo a ambientes tão diversos como recifes de coral e pradarias marinhas.

Seria de se imaginar que a implementação de organismos regionais de pesca e da adoção de técnicas modernas de fiscalização e controle da pesca, ambos na virada do século, tivessem ajudado a reverter o declínio assustador dos tubarões nos últimos anos; mas o que está acontecendo é exatamente o contrário. Incentivados pela demanda brutal que uma emergente classe média chinesa – e seus contrapartes nas comunidades asiáticas em outros países – está gerando por um prato dos mais inúteis já inventados, a sopa de barbatanas de tubarão, pescadores ao redor do globo estão exterminando aos milhões os tubarões que lhes caiam nas mãos, incentivados por atravessadores chineses e japoneses que não só comandam as frotas de pesca industrial, mas ainda percorrem o litoral dos países em desenvolvimento, Brasil inclusive, oferecendo dinheiro a qualquer pescador que queira massacrar tubarões pelas barbatanas somente. Neste caso, os ditos “pescadores artesanais coitadinhos” são tão culpados do crime quanto os industriais, até porque vêm matando exemplares juvenis de tubarões em áreas costeiras de reprodução sem qualquer controle ou consciência.

Sopa de ignorância

“há não sei quantos anos um certo imperador chinês tomava essa coisa, de ignorância em ignorância foi-se consolidando o papel de prato dos ricos e famosos às barbatanas de tubarão (…) “

A sopa de barbatana de tubarão tem como exclusiva função conferir status ao boçal que a oferece numa festa, ou que a pede diante de outros num restaurante. E sequer é o que aparenta. Na verdade trata-se de uma sopa de galinha chocha, porque a cartilagem da barbatana não tem qualquer sabor ou valor nutritivo e é preciso adicionar caldo de galinha para que ela seja minimamente palatável. Mas como há não sei quantos anos um certo imperador chinês tomava essa coisa, de ignorância em ignorância foi-se consolidando o papel de prato dos ricos e famosos às barbatanas de tubarão, condenando as espécies a se aproximar do abismo da extinção e os ambientes marinhos ao desequilíbrio. E, claro, não são os tubarões da China ou Japão apenas, mas do mundo todo, fiéis que são aqueles países à tradição igualmente condenável de mandar suas frotas roubar escandalosamente a fauna marinha de outras nações e regiões, principalmente as mais pobres e vulneráveis. E a matança, para piorar, é tão somente pelas barbatanas: os pescadores que atendem aos traficantes asiáticos descartam toda a carne dos tubarões – às vezes centenas de quilos por animal – para fazer lugar nos porões dos barcos às barbatanas, muito mais valiosas. Trata-se do “finning”, ou remoção das barbatanas em alto-mar, um dos piores crimes da pesca que já se viu.

Diante desse quadro dantesco, e da visão geral da pesca marítima no Brasil como um free-for-all sem qualquer fiscalização efetiva e onde aberrações como o “arrendamento” (leia-se abertura irrestrita dos portos) de dezenas de barcos atuneiros japoneses para estuprarem livremente o Atlântico Sul, a partir de sua base no Rio Grande do Norte, ainda ocorrem à luz do dia, não seria de se esperar que o Ministério da Pesca aceitasse de bom grado restringir a prática do “finning” no Brasil. Qual não foi a minha surpresa, portanto, quando os passarinhos de Brasília me contaram que Marcelo Crivella não apenas apoiou a assinatura de norma proibindo a prática no Brasil, mas ainda interessou-se pessoalmente pelo assunto, assumindo o compromisso de avançar mais na conservação dos tubarões em águas nacionais. Aparentemente, a anuência do MPA foi também decisiva para que o Brasil assumisse um papel protagônico na Convenção CITES para a Regulamentação do Comércio de Espécies Ameaçadas, que deverá reunir-se em março próximo na Tailândia para discutir propostas de restrição do comércio internacional de algumas das espécies de tubarões e raias mais ameaçadas pelo tráfico de seus subprodutos.

Lampejo raro

“o mercado global de mergulho movimenta algo como 8 bilhões de dólares por ano, e os mergulhadores-turistas se deslocam a grandes distâncias para ter o privilégio de mergulhar com os tubarões nos locais ainda preservados.”

Evidentemente, há muitos protagonistas importantes atuando no tema além do Ministro Crivella. No Ministério do Meio Ambiente, uma rara conjunção de técnicos de qualidade com indicados políticos menos iletrados está se empenhando em reverter o descaso com a biodiversidade marinha que vem dominando a (indi)gestão de Lulla Roussef. Mas a abertura de Crivella para cooperar e dialogar com o MMA e enfim tomar medidas de conservação como no caso dos tubarões sinaliza uma postura inédita naquela pasta antes maldita para a Natureza, e que teve entre seus titulares anteriores uma senadora catarinense do PT conhecida como lobista da mineração de carvão (e metida num escândalo de compra irregular de lanchas para o MPA em troca de jabá eleitoral) e um político do PT carioca totalmente inexpressivo, cuja maior “contribuição” ao tema foi recentemente propor que a Estação Ecológica de Tamoios, uma das poucas Unidades de Conservação marinho-costeiras federais bem administradas, fosse aberta à pesca profissional…

A abertura política de Crivella à gestão esclarecida e tecnicamente correta dos “recursos pesqueiros” – da biodiversidade marinha brasileira, melhor dito – com a participação de protagonistas do meio ambiental seria um lampejo de modernidade no obscurantismo que vem caracterizando o pseudo-desenvolvimentismo soviético de Lulla Roussef, cuja especialidade é enxergar somente um setor da economia e sobre ele despejar benefícios e subsídios indevidos, enquanto a geração de emprego e renda e os potenciais de desenvolvimento de setores “não-apadrinhados” morre à míngua. Reverter isso na gestão marinha brasileira é particularmente importante dado o imenso potencial econômico e social que teria o Ecoturismo marinho-costeiro em nosso país se não estivesse decretado que o mar é apenas da pesca e das petroleiras.

É aqui que o leitor encontrará resposta à pergunta legítima sobre quem, afinal, é o Gabriel mencionado no título deste breve texto. Trata-se do pesquisador Gabriel Vianna, residente na Austrália e um dos brasileiros mais importantes no cenário internacional de conservação dos tubarões, graças ao seu trabalho pioneiro de estudar quanto vale um tubarão vivo em comparação com um tubarão morto. Ora, o mercado global de mergulho movimenta algo como 8 bilhões de dólares por ano, e os mergulhadores-turistas se deslocam a grandes distâncias para ter o privilégio de mergulhar com os tubarões nos locais ainda preservados. Em países como Palau, os estudos de Gabriel e seus colegas indicaram que cada tubarão vivo gera em torno de 178.000 dólares/ano em turismo, num montante anual geral de 18 milhões de dólares, enquanto que em Fiji esse valor anual dos tubarões observados – sem que seja morto um só desses animais – pode chegar a mais de 42 milhões de dólares. Em comparação, um tubarão morto, ou seja, apropriado uma vez só por apenas uma pessoa, sem chance de gerar lucros a longo prazo, vale no máximo 150 a 200 dólares. Gabriel Vianna e o resultado de suas pesquisas de valoração tocam os políticos naquilo que mais lhes importa – o bolso – e vêm ajudando a inspirar a criação de santuários de tubarões e a proibição do “finning” em vastas áreas do Pacífico. Seu trabalho subsidia também as campanhas de diversas iniciativas de conservação dos tubarões e arraias, como a Divers for Sharks, sediada no Rio de Janeiro e que mobiliza cerca de 15.000 mergulhadores e amantes do mar em 85 países em ações para barrar o “finning” e a pesca predatória.

Infelizmente, o Brasil ainda não aprendeu o já quase universal caminho da geração e disseminação de emprego e renda com ambientes preservados e fauna e flora vivas, e nossos milhares de mergulhadores são hoje obrigados a ir a Fernando de Noronha ou ao Caribe para ter chances maiores de ver tubarões nos mergulhos. Noronha, onde a pesca segue comendo solta, perderá seus últimos tubarões muito em breve se nada for feito. Seria interessante, ainda que melancólico, estimar os bilhões em prejuízo que a sobrepesca de tubarões e outras espécies causa ao país ao inviabilizar o Ecoturismo marinho. Bilhões de reais em empregos e renda para milhares nas nossas comunidades costeiras, postos fora, destruídos pelos subsídios à continuidade da matança e omissão dos gestores ignorantes que não aprendem com as experiências bem-sucedidas de outros países e não consideram Natureza viva como fonte de riqueza.

Quem sabe estamos assistindo uma mudança de paradigma que possa levar à correção de ao menos uma parte da imensa bandalheira que é a pesca no Brasil. Se Marcelo Crivella, que ao que parece lê compulsivamente e em várias línguas – raridade absoluta num des-governo de néscios paroquiais e ignorantes dos avanços globais em gestão ambiental pública – fizer dos tubarões apenas o começo de uma virada para melhor na gestão da biodiversidade marinha brasileira, e avalizar que essa postura seja levada globalmente em posições mais racionais e avançadas do Brasil em foros internacionais de pesca e conservação, sua passagem pelo MPA – e pelos nossos apupos iniciais – terá sido, amplamente, justificada. Alea jacta est.

 

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