Colunas

Nosso Simpósio em Havana

Encontro Latino-Americano de História Ambiental, em Cuba, revela a riqueza de nossas raízes sociais e culturais em sua conturbada relação com o meio ambiente.

19 de novembro de 2004 · 19 anos atrás

A história ambiental é um campo emergente na ciência contemporânea. Nos mais diferentes países se multiplicam as publicações, cursos, seminários e projetos de pesquisa que trabalham nesta perspectiva.

Em parte isso se explica por razões teóricas. A aproximação entre a história e a ecologia, que conduz a um olhar mais profundo sobre o peso dos fatores biofísicos na definição da trajetória e destino das sociedades humanas, tem se revelado um instrumento fecundo e inovador de análise, capaz de lançar nova luz sobre antigos problemas da compreensão histórica.

Em colunas futuras espero compartilhar alguns exemplos dessa afirmação com os leitores de O Eco. É preciso considerar, no entanto, que as razões práticas são igualmente importantes para entender esse crescimento. O conhecimento histórico-ambiental é cada vez mais relevante no planejamento territorial e na formulação de políticas públicas, tanto na arena estrita do ambiental (que na verdade nunca é “estrita”) quanto nos campos da saúde, energia, transportes etc. Nos projetos de recuperação ecológica — despoluição de rios e baías, por exemplo — como saber o que “recuperar” se não se conhece a evolução anterior da paisagem?

Os norte-americanos, dentro do pragmatismo e vitalidade que caracterizam a sua academia, saíram na frente, criando uma “American Society for Environmental History” (ASEH), ainda em 1977. A história do território norte-americano vem sendo esquadrinhada por uma legião de pesquisadores. A evolução de cada bacia, cada rio e cada floresta está sendo medida e analisada. As conseqüências desse conhecimento já se fazem sentir em muitas áreas, inclusive no debate político. A Europa, de forma mais lenta, segue o mesmo caminho. A European Society for Environmental History (ESEH) foi criada em 1999, promovendo pesquisas e discussões de alta qualidade.

Como fica, neste quadro, a América Latina? Em primeiro lugar, o que não falta entre nós é material de estudo para historiadores ambientais. A riqueza e complexidade dos biomas e ecossistemas existentes na região, conjugadas com uma história colonial e pós-colonial em grande parte baseada na exploração predatória dos recursos naturais, formam um vasto campo de investigação em boa medida ainda inexplorado. Mesmo considerando que a tradição historiográfica latino-americana foi bastante rica em intuições e análises sobre a relação sociedade/natureza. Os que hoje se aventuram nesta trilha, portanto, não devem se sentir isolados intelectualmente. Algumas obras clássicas do pensamento social brasileiro merecem sob todos os ângulos a definição de “história ambiental”. Estou pensando, especialmente, em “Nordeste”, de Gilberto Freyre (1937), e “Caminhos e Fronteiras”, de Sérgio Buarque de Holanda (1956).

Por fim, está cada vez mais claro o fato de que os modelos de transição para o desenvolvimento sustentável não podem ser abstratos e universais. O pensamento ecológico chama para a concretude da vida, para o exame das circunstâncias específicas observadas em cada sistema de interações e interdependências. O imperativo de encontrar novos modelos de desenvolvimento para a América Latina, baseados em relações inteligentes e co-evolutivas com o mundo natural, precisa fundamentar-se no conhecimento particular da realidade ecológica, histórica e cultural dos nossos países. Ou seja, a história ambiental possui uma clara dimensão política.

Por todos estes fatores, é auspicioso registrar o movimento cooperativo e dinâmico dos historiadores ambientais da região. O I Simpósio de História Ambiental Latino-Americana foi realizado em 2002, em Santiago do Chile, como parte do Congresso Mundial de Americanistas. Um II Simpósio ocorreu recentemente, entre 25 e 27 de outubro de 2004, na cidade de Havana, que sempre foi símbolo da encruzilhada caribenha de culturas, etnias, economias e espécies naturais. A iniciativa de organizar o encontro partiu de um excelente historiador ambiental cubano, Reinaldo Funes Monzote, que publicou recentemente um livro que já nasceu clássico: “De Bosque a Sabana: Azúcar, Deforestacíon y Médio Ambiente em Cuba: 1492/1926” (México, Siglo Veinteuno, 2004). A história ambiental de Cuba, aliás, que tem como eixo a destruição da mata tropical pela monocultura escravista, soa mais do que familiar para o leitor brasileiro.

Examinando as mesas temáticas do evento é possível vislumbrar o estado da arte dos estudos histórico-ambientais na América Latina. Na série de sessões sobre “Novas Histórias de Bosques”, por exemplo, ficamos sabendo através do professor mexicano José Flores, da Universidad de Tlaxcala, que o uso da trementina na iluminação pública produziu uma enorme destruição florestal no entorno da cidade de Puebla no século XIX (o que me levou a meditar sobre o pouco que conhecemos a respeito da relação entre a pesca da baleia e o uso do seu óleo na iluminação das cidades brasileiras no mesmo século…). A professora Claudia Leal, da Universidad de los Andes de Bogotá, por sua vez, nos explicou como a extração das sementes da Palma de Tagua (o chamado “marfim vegetal”, conhecido no Brasil como Jarina), produziu na Amazônia colombiana, entre 1860 e 1940, os mesmos surtos efêmeros e caóticos de urbanização que a extração do mogno hoje produz na Amazônia brasileira. Na seqüência, o historiador brasileiro de origem norte-americana Christian Brannstrom, da Texas A&M University, apresentou uma investigação minuciosa sobre como a industrialização de São Paulo, entre 1900 e 1960, foi em grande parte baseada na queima de lenha como fonte de energia, exaurindo reservas de Mata Atlântica que ele chamou de “hinterland energético” da cidade. Enquanto que a geóloga Marjorie Nolasco, da Universidade Estadual de Feira de Santana, revelou como a paisagem de Cerrados e Campos Rupestres da Chapada Diamantina, que normalmente é considerada “natural”, foi profundamente moldada por uma longa história de garimpo de diamantes, que provocou o desaparecimento de matas ciliares e florestas tropicais que no passado também faziam parte da paisagem.

A mesa sobre “Histórias ambientais e culturais da carne e da pecuária” apresentou igualmente um leque significativo de temas para reflexão. Dois professores colombianos, Alberto Flórez e Luis Baptiste, da Pontifica Universidad Javeriana, analisaram através de uma combinação de história, antropologia simbólica e ecologia a difusão do consumo de carne bovina naquele país, substituindo as carnes silvestres que caracterizavam as dietas indígenas anteriores. Já Stefania Gallini, da Universidad Central de Colombia, descreveu os impactos genéticos e ambientais provocados pela introdução do gado Zebu, originário da Índia, na economia rural daquele país entre 1900 e 1950, um processo que ocorreu em paralelo no Brasil. Os defensores da superioridade das antigas variedades coloniais de gado chegaram a descrever o Zebu como um “Átila do Ganges”, que vinha conquistar o campo colombiano de forma agressiva e invasora. Robert Wilcox, da Northern Kentucky University, um ex-aluno de Warren Dean, analisou as venturas e desventuras ecológicas das empresas estrangeiras que tentaram implantar uma agricultura empresarial no Mato Grosso entre 1912 e 1942, como a famosa “Miranda Estância Company”, prenunciadoras dos problemas e possibilidades da atual explosão do agronegócio no Brasil central.

Uma mesa sobre a história comparada dos “Agroecossistemas de Plantações para Exportação” confrontou as dinâmicas de desmatamento provocadas pelo avanço da cana no norte de Cuba (apresentado por Reinaldo Funes Monzote) e do café no Vale do Paraíba no século XIX (apresentado por este colunista) com a difusão das plantações de banana na Costa Rica e Honduras durante o século XX, marcada pelo uso dos praguicidas, os chamados “veneneros” (discutida por John Soluri, da Carnegie Mellon University). Um estudo fascinante e arguto, além disso, foi apresentado por Sterling Evans, da Humboldt State University, ao revelar a maneira pela qual o desenvolvimento dos cinturões de trigo nos Estados Unidos e no Canadá afetou profundamente o ambiente da Península de Yucatan no sul do México entre 1890 e 1950. Como? Através da corda fibrosa e muito resistente que ligava os grandes tratores aos arados norte-americanos, para cuja fabricação a matéria prima ideal era o henequen ou “fibra de sisal”, retirada de um cacto denominado Agave. Com a explosão da demanda provocada pela agricultura industrial do trigo, o cacto passou a ser cultivado de maneira descontrolada, substituindo importantes áreas de bosques nativos.

Como se pode imaginar, não seria possível mencionar no espaço de uma coluna toda a riqueza dos trabalhos apresentados no Simpósio (ver programa). A lista das sessões temáticas permite visualizar a diversidade de assuntos, sempre relacionados com a América Latina: “História ambiental da saúde e da medicina”, “História do clima e dos desastres naturais”, “Água, agricultura e meio ambiente”, “Políticas ambientais urbanas”, “Custos ambientais do desenvolvimento mineiro, industrial, e energético”, “Conflitos ambientais: lógicas, discursos e tipologia”, “Pesca e exploração dos recursos aquáticos”, “Aplicações da história ambiental na conservação e manejo da biodiversidade”, “Cosmovisões e conservação” e “História ambiental como ferramenta da ecologia política”.

Um fruto institucional importante do Simpósio de Havana foi a criação da Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental, cujo processo de organização estará concluído nos próximos meses. Um instrumento importante para promover o estudo e, na melhor das hipóteses, contribuir para a transformação da rica e dramática história ambiental da região.

Leia também

Notícias
28 de março de 2024

Estados inseridos no bioma Cerrado estudam unificação de dados sobre desmatamento

Ação é uma das previstas na força-tarefa criada pelo Governo Federal para conter destruição crescente do bioma

Salada Verde
28 de março de 2024

Uma bolada para a conservação no Paraná

Os estimados R$ 1,5 bilhão poderiam ser aplicados em unidades de conservação da natureza ou corredores ecológicos

Salada Verde
28 de março de 2024

Parque no RJ novamente puxa recorde de turismo em UCs federais

Essas áreas protegidas receberam no ano passado 23,7 milhões de visitantes, sendo metade disso nos parques nacionais

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.