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O maremoto de Valdivia: uma tragédia esquecida

As tsunamis que arrepiaram o mundo em 2004 ganharam da mídia um tratamento bem diferente do que foi dado ao maremoto que transformou o Chile em 1960

20 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

Vista de uma rua de Valdivia após o maremoto. Foto: Wikipédia.

Em dezembro fez 1 ano desde o maremoto que devastou as costas do sudeste asiático. Pela primeira vez o mundo testemunhou pela televisão a força invasora de um mar descontrolado. Em alguns casos foi um alto preço pago pelo desrespeito e ignorância da indústria imobiliária e turística sobre áreas vulneráveis da zona costeira. Dizem que metade dos estragos e vidas perdidas poderiam ter sido evitados se a competição desastrada do turismo internacional respeitasse as características originais da zona costeira que amortece esses fenômenos naturais. São rodovias e obras de engenharia corrompendo a linha da costa; aterros e dragagens violentando praias, hotéis de luxo adulterando dunas e a carcinocultura estuprando manguezais. Só muda o endereço. Tudo isso ainda acontece com frequência, sobretudo em países do terceiro mundo, onde “gerenciamento costeiro” é um termo que ainda não faz parte do vocabulário político e socioeconômico de seus governantes. O mundo todo se sensibilizou com essa tragédia que, como muitas outras, jamais será esquecida.

Entretanto, pior do que uma tragédia mundialmente divulgada é uma tragédia mundialmente esquecida. Não tivemos a chance de ser suficientemente solidários, e oferecemos pouca (ou nenhuma?) ajuda humanitária para o Chile em maio de 1960, quando quase a metade do país se inclinou 15 graus durante dois dias de terremotos contínuos, originados em 56 epicentros. Toda a zona costeira com 40 km de largura e 1350 km de extensão, desde o norte de Concepción até a Ilha Grande de Chiloé (Fig.1), foi violentamente sacudida e geograficamente modificada.

A mitologia indígena do sul do Chile descreve a formação do Arquipélago das Ilhas Chiloé como uma batalha entre duas gigantescas serpentes (Fig.2). São as deusas da água Coicoi-vilu (Co = água e vilu = cobra) e da terra Tentén-vilu (Ten = terra). Antigamente a Grande de Chiloé e suas ilhas menores formavam terras contínuas, unidas ao corpo principal do continente sul americano. A guerra mitológica começou quando, um belo dia, a deusa das águas acordou mal humorada e ordenou que o mar se elevasse e invadisse o continente. Condenou ao desaparecimento seus habitantes e suas planícies férteis, suas florestas e animais. O desespero dos homens acordou Tentén-vilu que imediatamente veio em socorro de seus domínios terrestres continentais. Começou a combater a deusa da água com violência telúrica, ordenando que as terras inundadas se erguessem, livrando-se das águas intrometidas e formando novas ilhas. Ao mesmo tempo procurou salvar os homens do afogamento transformando-os em pássaros ou dando-lhes o poder de voar. Finalmente a deusa das águas se retirou, dando-se por vencida. Mas a vitória de Tentén-vilu foi parcial uma vez que as águas pararam de subir mas também não voltaram a baixar.

“(…) pior do que uma tragédia mundialmente divulgada é uma tragédia mundialmente esquecida.”

O resultado da batalha originou o cenário geográfico atual do sudoeste chileno, com suas centenas de ilhas que formam o Arquipélago das Chiloés. Pelo menos assim acreditavam os índios Mapuche. E a crença parecia ainda estar viva entre alguns de seus membros até maio de 1960. Quando a polícia chegou, eles já haviam matado um menino de 6 anos a pauladas e arrancado seu coração para oferecê-lo à Coicoi-vilu, na esperança de aplacar sua ira contra as planícies costeiras do sul do Chile e o trágico destino de quase um terço da população do país na época (revista Times de 4 de julho de 1960).

Tremores em sequência

Tudo aconteceu em dois dias. Começou no sábado e terminou no domingo de tarde. Um fim de semana trágico para o Chile. Cerca de 45% das famílias no sul do país viviam em condições precárias na época. Nos 3 meses que antecederam a catástrofe os trabalhadores da indústria carvoeira estavam em greve por melhores condições de vida e trabalho. O governo federal cortou os suprimentos para a região. Uma estratégia desleal para acabar com o movimento grevista. Foi nessas condições que cerca de 3 milhões de pessoas, habitantes de 13 das 24 províncias chilenas, acordaram precisamente às 06 horas, 2 minutos e 52 segundos do sábado, dia 11 de maio de 1960, com os primeiros tremores de terra. O epicentro foi perto da cidade litorânea de Concepción, com uma intensidade de 7,5 graus na Escala Richter. Era só o começo de uma tragédia anunciada. No mesmo dia, uma série de tremores em sequência, vários com intensidades entre 6 e 8 na Escala Richter, continuaram a sacudir e a torcer a terra violentamente. A pavimentação das ruas se estilhaçava contra paredes e janelas e abriam-se fendas pra todos os lados.

Valdivia foi a cidade que mais sofreu. Após a primeira série de tremores ocorrida no sábado, quando a devastação no sul do país parecia ter terminado, com uma população desabrigada em luto e revirando destroços, começou uma segunda série de tremores no dia seguinte, domingo, por volta das 3 horas da tarde. O primeiro epicentro foi ao sul da Ilha Chiloé, com intensidade de 7,5 na Escala Richter. Trinta segundos depois Valdivia, ao norte, sofreu o pior abalo sísmico já registrado na história da sismologia mundial, e os resultados mais devastadores de toda a região chilena. Em poucos minutos milhares de quilômetros quadrados afundaram 1,5 metros, mudando a linha da costa, o curso de vários pequenos rios, e provocando a formação de morros, ilhas e lagos. Dizem que até montanhas se moveram. Os livros didáticos de Geografia do ensino fundamental no Chile, provavelmente tiveram que ser rescritos após maio de 1960. Com a inclinação da placa tectônica entre Valdivia e Chiloé, as cidades costeiras de Puerto Montt, Ancud, Castro e Quellon foram inundadas, com perdas de até 90% das casas. De acordo com as informações oficiais, ao mesmo tempo que o sul afundava, permitindo o avanço do mar, o norte se ergueu pelo menos 1 metro.

Hilo no Havaí, após o tsunami. Foto: Wikipédia.

O terremoto de Valdivia foi na verdade um maremoto, pois o epicentro ocorreu no fundo do Oceano Pacifico, a 60 km abaixo do leito marinho, próximo à costa. A intensidade foi 9,5 graus na Escala Richter, o que representa o maior abalo sísmico já registrado em toda a história da humanidade. Para se ter uma ideia da força do fenômeno, a quantidade de energia (em ergs) liberada na região de Valdivia foi 40 vezes maior do que o terremoto que destruiu São Francisco (EUA) em 1906. Como resultado do abaixamento da terra, o nível relativo do mar chegou a nada menos do que 6 metros em centenas de quilômetros quadrados e intensificou as magnitudes dos enormes tsunamis que vieram a seguir. Vieram pr´arrasar !!! O mar terminou afogando o pouco que havia sobrado e sobrevivido com os tremores violentos das últimas horas.

De acordo com os relatos de sobreviventes valdivianos, no momento do grande maremoto, surgiram enormes manchas escuras na superfície do mar. Pescadores pensaram que fosse um cardume de baleias. Era sedimento ressuspendido pelo tremor do assoalho marinho. Imediatamente após o maremoto, ouviu-se um barulho estranho semelhante ao de um aspirador de pó, ao mesmo tempo em que o mar se retraia rapidamente até secar e expor partes do fundo da baia de Valdivia. Algumas pessoas (as únicas que se salvaram) se abrigaram nos morros ao redor da baia. Em seguida veio um silêncio e 15 minutos depois, surgiu o monstro no horizonte; Uma onda de 25 metros de altura com velocidade maior do que 100 km por hora. Era o mar regressando. Exceto o super-homem, o que pode parar uma parede de água com essa altura e essa velocidade?

Depois, os tsunamis

O resultado foi devastador. As vilas de Corral de Baixo e Niebla, localizadas na boca da baia de Valdivia, foram as que mataram os tsunamis no peito. Toda a população de Corral desapareceu. Famílias inteiras sumiram junto com suas casas, seus pertences e animais domésticos. Pescadores assustados com a sequência de terremotos anteriores, carregaram seus barcos com toda a família, na ilusão de se livrar dos efeitos em terra. Também nunca mais foram encontrados. Vários navios ancorados no porto de Valdivia foram arrastados continente adentro. Um deles destruiu uma escola e várias casas. Outro foi parar atrás de uma fábrica têxtil. Até cidades a 1 km de distância do mar foram totalmente arrasadas. Hoje ainda se pode ver embarcações encravadas no morro quando se navega pelo rio Valdivia rumo à costa. Eu mesmo vi um deles a uns 50 metros acima do nível do mar, quando estive na região em 1995.

“A intensidade [do terremoto de Valdivia] foi 9,5 graus na Escala Richter, o que representa o maior abalo sísmico já registrado em toda a história da humanidade.”

Não se sabe ao certo quantos morreram uma vez que o fluxo de informação da época além de precário, havia sido totalmente bloqueado pela catástrofe múltipla. Estima-se que morreram pelo menos 10.000 mil pessoas, o que não é nada comparado à tragédia recente da Indonésia. Mas nem só de mortos são feitas as tragédias. Foram quase 3 milhões de pessoas atingidas, entre mortos, feridos e prejudicados pela perda material e afetiva de suas casas, parentes e amigos. Lembre-se que isso aconteceu em 1960. Não havia internet e nem notícias on-line. Rádios, TVs e jornais da época estavam mais preocupados em noticiar a iminência da guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética (por causa dos mísseis em Cuba) do que a guerra mitológica e tectônica entre Coicoi-vilu e Tentén-vilu. Essa sim aconteceu. E só o povo chileno viu.

Se você quiser checar essas informações dê uma olhada nos seguintes sites:

http://www.gochile.cl/html_s/ChileValdivia/Chile-Valdivia-Terremoto.asp

http://siglo20.tercera.cl/1960-69/1960/rep1.htm

Se quiser ver fotos e mais detalhes técnicos da tragédia veja em

http://www.angelfire.com/nt/terremotoValdivia/

 

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