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Velas de Icapuí

A lagosta pode ser considerada a cocaína das águas nordestinas. Grandes empresários exterminam os crustáceos e deixam os pescadores artesanais a ver navios.

14 de julho de 2005 · 19 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

No início de julho passei 10 dias na Praia de Peroba, município de Icapuí, no Ceará, desfrutando da hospitalidade de Bosco e Leinad Carbogin, um “casal 20” do terceiro setor cearense. Lá tudo se resume em falésias, dunas, praias e, obviamente, o marzão verde e muito vento alíseo de Nordeste. Em escala sazonal a paisagem pode até ser monótona pra quem vive ali. Mas a dinâmica caótica do vento, das ondas e da reflexão da luz solar dão conta da variedade cênica de hora em hora. A rapidez com que o sol nasce e se põe é surpreendente para quem está acostumado a viver nas latitudes do sul do país. É que os paralelos próximos ao Equador giram mais rápido para completar as 24 horas diárias de rotação terrestre em relação aos demais.

O Nordeste do Brasil é rico em radiação solar, mas banhado por águas quentes muito pobres em nutrientes. Nutriente é todo elemento químico sem os quais vegetais ou animais não crescem. É como o adubo na agricultura. No mar do Nordeste brasileiro a mãe natureza foi generosa com a radiação solar, mas economizou na oferta de nutrientes. E é com muita luz mas pouco nutriente que o mar nordestino abriga sua biodiversidade tropical. Água quente e transparente dá as condições ideais para a formação de extensos bancos de macroalgas. Algumas com exoesqueleto de carbonato de cálcio formando recifes calcáreos que dominam o fundo marinho desde próximo a costa até a faixa dos 90 metros de profundidade quando a luz, apesar da transparência da água, já não é suficiente para que o crescimento das algas supere a herbivoria dos peixes e invertebrados recifais. Essa floresta submersa sustenta a biodiversidade marinha nordestina sobre a qual sobrevivia fartamente a pesca artesanal de subsistência até meados do século passado (i.e., do século XX).

Na zona costeira domina uma flora arbustiva que começa na beira das falésias para o interior, disputando espaço com carnaúbas e cajueiros enormes. É a mata de tabuleiro, uma transição entre Mata Atlântica e Caatinga. Nas praias dominam coqueiros e estolões de Hipomaea, uma vegetação pioneira de dunas. Sobre esse cenário biótico vivem moradores locais, em sua maioria pescadores que vivem, ou melhor, sobrevivem da pesca artesanal.

Reginaldo é um bom exemplo do pescador vitimado pela escassez da lagosta e da ação da pesca predatória com compressor. Ele chegou com o vento da tarde e estava estacionando seu paquete, uma jangada pequena, no supralitoral arenoso, quando me aproximei com aquele arzinho de hipocrisia diplomática e perguntei: “Como é bonito aqui, né moço? Pegou alguma coisa?” Na verdade, eu estava interessado em saber se ele tinha pego alguma lagosta. Não tinha. Mas se o meu problema era matar a vontade de comer lagosta, ele disse que tinha duas no “frizi”. O jantar em sua casa e a conversa de pescador após o café foi a maneira mais espontânea de entrar em contato com a realidade do dia-a-dia do pescador artesanal nordestino que, exceto pelos protagonistas fictícios das mini-séries e novelas da televisão brasileira, é uma das classes sociais que continua totalmente esquecida pelos nossos governantes.

Reginaldo utiliza covos e uma única caçoeira de 500 metros com malha 7 e “nalho” (naylon) de espessura 45. Tem 34 anos mas aparenta 50, e seu sonho de consumo é um bote mais seguro para que possa pescar mais longe e com mais conforto e segurança. Percebi o quão analfabeto ele era depois que ele usou a expressão “precisamos por os pingos nos x’s” referindo-se ao controle da pesca ilegal da lagosta que tanto o prejudica. Com a ajuda de um tio, começou a pescar aos 10 anos. Hoje é um dos cerca de 1 milhão de pescadores artesanais no Brasil que pratica a chamada “pesca artesanal de subsistência”, um termo técnico usado nas ciências sociais e na biologia pesqueira, para designar a única atividade da qual ele, pescador, sobrevive. Como eu disse, sobreviver é exclusivamente o que o pescador nordestino faz hoje em dia. O que difere a sua pobreza humilde e resignada da miséria de um favelado urbano ainda é a possibilidade de tirar diariamente alguma proteína do mar em frente da sua casa. Graças ao mar, também parece ainda gozar alguma vantagem em relação ao sertanejo castigado pela seca, uma vez que praticamente quase todo ser vivo marinho pode ser digerido.

Assim como Reginaldo, centenas de pescadores partem diariamente das Praias Redonda e Peroba. A rotina se repete há anos. Saem por volta das 5 da manhã com seus botes e paquetes movidas a velas brancas triangulares. O embarque é feito em saídas sincronizadas de “catraias” que são balsas movidas a vara, como na gôndolas de Veneza, cada uma com 15 a 20 homens eretos e imóveis. Se alguém se mexer a balsa vira. O catraieiro os leva aos seus respectivos botes. As velas desabrocham uma a uma e, com o terral pela popa, se afastam lentamente da praia até seus pesqueiros tradicionais. Vão buscar os peixes e lagostas presos durante a noite nas caçoeiras e manzuás. Depois retornam bordejando por volta das sete. Daí repetem o mesmo roteiro entre as 3 e 5 da tarde, na ida bordejando contra o vento alíseo e regressando em popa. Quando voltam ao entardecer concentram-se em recolher velas e abrigar os barcos do vento e, na maioria das vezes, sem muito o que comemorar. Parece que o orgulho da pesca bem sucedida e a fartura dos velhos tempos terminou. Hoje ainda são centenas de velas, pequenos triângulos brancos no horizonte, disputando o que ainda resta de peixes e lagostas no mar de Icapuí.

Além do baixo índice sócio-econômico, a decadência cultural se manifesta nas tábuas substituindo toras de piúba, a madeira típica das jangadas, e nos sacos plásticos vagabundos substituindo samburás para armazenar os peixes capturados. Velas e retrancas remendadas e o isopor é a última moda na confecção dos pequenos paquetes, algumas com apenas 1 metro quadrado, e que mais parecem salva-vidas. A única razão dessa decadência cultural é um mar cada vez mais vazio e o pescador artesanal nordestino se favelizando na mesma proporção. Não pelo mar tropical ser pouco produtivo, mas principalmente pela falta de apoio social e governamental na gestão de seus recursos pesqueiros, a única herança de seus antepassados.

Não sei ao certo os detalhes da origem do pescador nordestino, uma mistura de índios e brancos, mas vamos supor que até 1955 eles eram os únicos que pescavam peixes, caranguejos, ostras de mangue, sururus e, eventualmente, lagostas no mar em frente da sua comunidade. Não havia o Tamar e, portanto, tartarugas também faziam parte da dieta regional. O peixe era abundante e a população costeira era muito menor. Jorge Amado e Dorival Caymi descreveram e cantaram em verso e prosa a cultura e a vida do pescador baiano desse período. Se tivessem vivido no Ceará teriam sido igualmente ou até mais inspirados por histórias incríveis de pescadores, como as muitas que ouvi por aqui. Ouvi que os jangadeiros cearenses fizeram viagens ousadas entre o Ceará e o sul do Brasil, e até Buenos Aires, como forma de protesto ou por reivindicações sociais e trabalhistas. Algumas conquistadas outras não. Por exemplo, a inclusão parcial dos jangadeiros nas leis trabalhistas foi conseguida depois que quatro jangadeiros, partindo da praia de Iracema em Fortaleza em 1941 com uma jangada de piúba, chegaram ao Rio e foram recebidos como heróis por Getúlio Vargas. Essa foi a história filmada por Orson Wells em sua breve passagem pelo Brasil.

A aposentadoria por tempo de serviço para o pescador artesanal foi conseguida anos mais tarde no governo Médici, depois que dois jangadeiros cearenses chamaram a atenção da sociedade viajando com uma jangada até Ilha Bela, em São Paulo. Ou quando o mestre jangadeiro Mamede Dantas Lima e mais quatro jangadeiros da Praia do Canto Verde viajaram até o Rio de Janeiro em 1993 para protestar contra a caça predatória da lagosta com compressor. Essa caça continua até hoje, mas pelo menos voltaram com o seguro-desemprego para o pescador artesanal durante os períodos de defeso entre janeiro e abril, quando a pesca da lagosta é proibida pelo Ibama para recuperação dos estoques sazonais.

Depois do declínio da caça da baleia, que datava do século retrasado, a captura da lagosta tornou-se a pesca comercial mais importante do Nordeste do Brasil. Até meados da década de 1950, a lagosta era apenas um recurso como outro qualquer, capturado com o gereré, uma espécie de puça onde se amarrava a isca que atraía as lagostas. Quando entravam no gereré era como se entrassem num elevador, sendo erguidas rapidamente pra superfície. Mas, acreditem ou não, eram mais usadas como isca na pesca de linha.

Até que chegou um gringo chamado Davis Morgan. Era oficial da marinha americana durante a II Guerra, participando de operações navais entre os Estados Unidos, passando pelo Ceará e Fernando de Noronha até o norte da África. Morgan descobriu a lagosta nordestina e seu potencial econômico durante suas andanças por aqui. Após a guerra, já tinha o plano traçado. Explorar a pesca da lagosta do nordeste brasileiro para vender no mercado internacional. Dizem que trouxe a tecnologia da armadilha para capturar lagosta do tipo covo, que aqui chamam de manzuá ou cangalha. Por vários anos operou uma rede de atravessadores entre Fortaleza e Icapuí responsáveis pela compra e coleta da lagosta, que na época não valia mais do que um siri. Devido ao difícil acesso pelas estradas da época fazia o pagamento lançando sacos de dinheiro por helicóptero.

Ninguém sabe onde foi parar o tal Morgan depois de anos lidando e enriquecendo com a exploração da lagosta nordestina. Mas logo em seguida vieram os franceses no início da década de 1960. Freqüentemente, invadiam nossas águas territoriais pra “…leva lagôsta, leva lagôsta, porquê em Paris todo mundo gôsta” como dizia aquela opereta do Ari Toledo. Era exatamente como roubar galinha do vizinho, só que mais elegante. Quase que o Brasil entra em guerra com a França por causa do roubo de lagosta em nossas águas territoriais. A era Morgan e a quase Guerra da Lagosta entre Brasil e França despertaram o comércio pesqueiro nacional por esse nobre crustáceo, que passou a valer muito no mercado internacional, mais do que o camarão. Hoje pagam até 90 reais pelo quilo da cauda da lagosta adulta.

O pescador artesanal também iniciou sua guerra pessoal da lagosta. Começou a disputá-la não mais como subsistência, mas como renda em um mercado em expansão e garantido pelos atravessadores e pela nova cadeia produtiva. A lagosta passou a ser considerada o ouro do mar, do qual dependiam, e ainda dependem, milhares de pescadores nordestinos. Ainda hoje é a principal renda dali, a moeda local. Peixe é secundário. Peixe é pra comer, lagosta é pra vender e pagar as contas do mês. Estatísticas da secretaria da saúde do município de Icapuí revelam maiores taxas de mortalidade infantil no período do defeso, entre 1º de janeiro e 1º de maio.

A partir de 1970 a frota pesqueira nordestina cresceu vertiginosamente com apoio de subsídios governamentais, acima da capacidade suporte de uma plataforma tropical que foi feita apenas para suportar a pesca artesanal. Os empréstimos beneficiaram mais a pesca industrial do que pescadores artesanais. Desde então as lagostas têm sido exploradas vorazmente pela pesca empresarial, que não respeita cultura, tradição e bem comum. É primitivamente ambiciosa e egoísta e está pouco se lixando para o estrago sócio-ambiental que vem provocando não apenas no Nordeste, mas em toda a costa brasileira, de norte a sul.

Para piorar a situação, o pescador artesanal que usa apenas covos, começa a enfrentar uma máfia de caçadores locais que capturam lagosta com redes e mergulho de compressor. Vão atrás dos pesqueiros marcados pelos pescadores artesanais e mergulham trazendo centenas de lagostas de uma só vez. A pesca com compressor está proibida pelo Ibama mas não há fiscalização suficiente por falta de pessoal e recursos logísticos. Do mesmíssimo modo que não se consegue evitar o desmatamento ilegal na Amazônia. Hoje a lagosta pode ser considerada a cocaína da pesca nordestina. Vale o quanto pesa. Quanto mais difícil encontrar mais vale. E quanto mais vale, mais se pesca. E quanto mais se pesca menos tem, óbvio!

Conclusão: lagostas adultas só são encontradas logo após o término do defeso, em maio e junho. A partir daí o esforço pesqueiro começa a ser irremediavelmente concentrado na lagosta juvenil, cuja pesca é proibida mas, obviamente, também desrespeitada. Os pescadores de Icapuí dizem que o defeso só serve pros pequenos. Os empresários e atravessadores locais, além de continuar a garimpar lagostas com seus equipamentos proibidos, desrespeitando em dobro as leis federais de proteção do recurso, chegam a destruir caçoeiras e cangalhas da pesca artesanal para diminuir a concorrência. Ou pior ainda, quando roubam as lagostas capturadas nos manzuás do pescador artesanal. Isso também é crime hediondo.

É verdade, o pescador nordestino tem vantagens em relação à miséria do sertanejo. Mas essa vantagem diminui a cada ano sem que ninguém veja. A falsa impressão de que o mar ainda é rico e benevolente com o pescador brasileiro data da época em que o mar ainda era só dele. Dos Reginaldos. Ou seja, há mais de 50 anos. Ninguém percebe que hoje a situação é completamente diferente. A lagosta, assim como quase todos os demais recursos vivos marinhos do Nordeste brasileiro, outrora “inesgotáveis”, hoje são cada vez menos abundantes e alguns até raros em frente da sua casa. Já quase não pagam suas contas, muito menos compram seus modestos sonhos de consumo.

PS: Agradeço René Schärer, do Instituto TERRAMAR na Prainha do Canto Verde, e Roberto Kobayashi, um nipo-cearense que adotou Icapuí como o seu paraíso na Terra. Ambos me deram livros sobre o tema lagosta-jangadeiro, e dicas técnicas, culturais e históricas importantes sobre a problemática do pescador artesanal cearense.

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