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Mar Dulce Mar

Apesar de ser uma das maiores riquezas brasileiras, o Rio Amazonas está totalmente desprotegido de todo tipo de pirataria. Rouba-se de madeira à água.

20 de junho de 2005 · 19 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

A metade norte do continente sul americano é erodida pela bacia hidrográfica do Amazonas, a maior do mundo com cerca de 5,8 milhões de Km2. E todo esse material converge para a única saída possível na direção do oceano, o estuário do Rio Amazonas, por onde passam diariamente 600 mil metros cúbicos de água doce por segundo e 3 milhões de toneladas de sedimento. O que me intriga, não apenas no conteúdo da educação fundamental brasileira, mas também na base de informações científicas e acadêmicas do Brasil, é a pobreza de informações ambientais e biológicas sobre essa região, batizada de “Mar Dulce” pelo navegador espanhol Vicente Pinzón em 1500, no mesmo ano em que Cabral “achava” o Brasil.

 

O nome passou a ser usado pelos espanhóis para todo o rio, até Francisco Orellana mudar para Amazonas em 1542. O estuário amazônico é um dos ecossistemas costeiros mais importantes do mundo do ponto de vista ecológico e ambiental e, no entanto, quase nada sabemos sobre este imenso habitat costeiro. Uma das razões é sem dúvida a distância e a dificuldade de acesso, somadas ao baixo índice populacional e sócio-econômico da região.

 

A foz do Amazonas é tão geograficamente grande e desabitada que para estudá-la um barco de pesquisa deveria ser acompanhado por um posto de gasolina flutuante. As distâncias a serem percorridas são enormes. Barcos pequenos não tem autonomia suficiente para cobrir toda área. Navios que vem do mar só navegam por canais profundos com acesso ao rio, vias tradicionais da navegação local; 99% da área não permite o acesso de barcos maiores devido à baixíssima profundidade como conseqüência da deposição contínua de sedimentos trazidos pelo rio.

 

Até com satélite é difícil estudar a região devido a alta concentração de nuvens que se formam na zona de convergência intertropical do Equador. Ou seja, exceto em raras oportunidades o satélite só fotografa o branco das nuvens ou, na melhor das hipóteses, um quebra-cabeça instantâneo do mapa estuarino, que nunca se repete. Precisaria se investir muito dinheiro em um estudo completo do sistema.

 

Então como vencer essas barreiras naturais e financeiras para se estudar o estuário do Amazonas ? Eu quase testemunhei a solução para esse descaso crônico com a zona costeira do extremo norte do país. Em dezembro de 1998 visitei a Universidade Federal do Amapá em Macapá junto com colegas oceanógrafos de outras universidades. O objetivo da viagem, patrocinada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, era orientar o então reitor na organização de um futuro “Instituto de Pesquisas Oceanográficas do Amapá”. Não me lembro se o nome era exatamente esse ou algo parecido.

Além da Floresta Amazônica no quintal de Macapá, passava às margens da cidade 15% da água doce do planeta que deságua dos continentes para o oceano, espalhando-se por até 320 Km da costa, podendo chegar até o Caribe nos períodos mais chuvosos. O Rio Amazonas tem mais água do que a soma do volume de água dos Rios Mississipi, Nilo e Yangtzé. A largura do rio na foz pode atingir 240 Km, mais da metade da distância entre Rio e São Paulo. Enfim, um ecossistema de uma magnitude difícil de descrever. E no entanto, na época os cursos de graduação da UNIFAP eram os de sempre: Direito, Enfermagem, Educação Artística, Matemática, Letras e por aí afora. Não havia por exemplo cursos de Medicina Tropical, Biologia (hoje tem) ou qualquer ciência dedicada às águas estuarinas e da bacia amazônica ao redor. Cursos como Engenharia de Pesca e Oceanografia não faziam e ainda não fazem parte do currículo universitário na região. Portanto, apesar das boas intenções do reitor, a vocação regional daquela Universidade, como na maioria das universidades brasileiras, estava e continua sendo mais uma vez esquecida. Diluída nas águas do rio.

 

A primeira orientação para o bem intencionado reitor foi mudar o nome do futuro instituto para algo como “Centro de Pesquisas…bla, bla, bla…… do Estuário do Rio Amazonas”. Dissemos a ele: “Senhor Reitor, quase que o mundo inteiro já ouviu a palavra Amazonas pelo menos uma vez na vida. Mas poucas pessoas sabem o que significa Amapá”. Nós o convencemos de que o uso do nome Amazonas seria estratégico para conseguir fundos nacionais e internacionais para a construção e manutenção do Instituto (que até planta arquitetônica já tinha).

 

Cientistas do mundo todo sonham em estudar um sistema tão complexo, dinâmico e vasto como a mistura das águas do Amazonas com o Oceano Atlântico. Não se sabe quase nada sobre o tema, a não ser pelos resultados da expedição americana “AMASEDS” publicados em revistas científicas especializadas e algumas dissertações acadêmicas com apoio dos navios da marinha. O fato é que o tal Instituto nunca saiu do papel. A planta que o reitor nos mostrou deve estar enrolada dentro de um canudo qualquer, e a foz do rio Amazonas continua a ser uma das regiões costeiras menos conhecidas do Brasil.

 

A carência de informações ambientais sobre a região torna-a extremamente ameaçada pelo impacto da exploração de seus recursos. Desde o seu descobrimento por Pinzón, passam pelo estuário todo o tipo de pirataria. Madeiras nobres, minérios, biotecnologia, peixes ornamentais amazônicos que movimentam uma indústria global de 30 bilhões de dólares por ano. Junto com os milhões de toneladas de sedimento descarregados diariamente o estuário deposita muita matéria orgânica, um ótimo alimento para organismos de fundo. O sedimento forra o fundo de uma extensa área desde as costas do Amapá até as Guianas, onde a pesca de arrasto explora esses recursos mantidos pela descarga do rio. Peixes e camarões são diariamente garimpados pela indústria pesqueira que deixa um rastro de fauna acompanhante de cerca de 20 mil toneladas por ano. Os mais capturados para o comércio exportador são bagres enormes chamados “Piramutaba” e o camarão branco. Essa pesca é predatória e não traz benefícios diretos para a comunidade local. Nada fica para apoiar os estudos e o desenvolvimento sócio-econômico da região.

 

Além disso a região também é rica em gás e petróleo. E a falta de estudos sistemáticos e contínuos sobre o ambiente físico, químico, geológico e biológico a torna ainda mais vulnerável aos acidentes em decorrência da exploração desses recursos minerais. A última moda agora é a “hidropirataria”. Em 7 de julho de 2004 o jornal paranaense Gazeta do Povo publicou a matéria “Navios roubam água do Rio Amazonas denunciando o problema e a falta de fiscalização na área (o que não é nenhuma novidade). São navios petroleiros que após descarregar o óleo cru do Oriente Médio aproveitam para levar a água do rio durante o regresso. Cada navio pode abastecer seus tanques com até 250 milhões de litros de água. De graça e sem pagar imposto. Os clientes são as empresas engarrafadoras tanto da Europa quanto dos países do Oriente Médio onde água doce só por dessalinização da água do Golfo Pérsico. Na Europa elas deixam de pagar impostos pela utilização e tratamento da água dos rios europeus. Pense nisso quando você estiver saboreando uma Perrier com gás. Na Arábia Saudita (p.ex.) a dessalinização custa US$1,5 por metro cúbico. Para tratar a água do Amazonas, gastam a metade. Ou seja é um grande negócio pra todos eles. E o povo às margens do rio continuam a ver navios.

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