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A máquina do tempo: Flacourt e a fauna perdida de Madagascar

As ilhas não servem apenas como bons esconderijos de piratas. Seu isolamento também as transforma em laboratórios de biodiversidade.

12 de novembro de 2012 · 11 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

Quem nunca sonhou em viajar no tempo?

Esse velho sonho da humanidade tem sido um tema frequente da ficção, pelo menos desde que H. G. Wells escreveu “A Máquina do Tempo” em 1895. Mas parece ser um sonho impossível. A física nos diz que em teoria você pode viajar contra o tempo, se conseguir se mover numa velocidade próxima à da luz e continuar inteiro(a). No entanto, isso é visto como uma virtual impossibilidade tecnológica. Não podemos matar nossa curiosidade sobre o futuro distante. Os passados gloriosos também não voltam mais. O mundo dos mamutes, o do antigo Egito, o do Império Romano, são mundos maravilhosos que desapareceram há muito tempo, e que nenhum homem ou mulher da era moderna teve o privilégio de conhecer.

Ou não? O Egito e o Império Romano não tiveram mesmo jeito. Mas um homem moderno teve a fantástica chance de ter, diante dos seus olhos, um vislumbre do mundo desaparecido dos mamutes.

Ilhas como redutos da megafauna extinta

Por “mundo dos mamutes” eu me refiro à megafauna extinta nos últimos cinquenta mil anos. O termo megafauna tem sido usado para designar os animais de peso superior a 50 Kg. A megafauna extinta nesse período incluía, entre outros, marsupiais de duas toneladas na Austrália, mamutes e rinocerontes lanudos na Europa, mastodontes, tigres de dentes de sabre e preguiças gigantes nas Américas e moas na Nova Zelândia.

Todos esses grandes animais e muitos outros foram sendo extintos em sequência, seguindo os passos da chegada do homem a cada parte do mundo. É provável que o homem tenha sido a causa principal destas extinções; não pretendo discutir isso aqui, mas o leitor pode obter mais informações na minha coluna O caso dos mastodontes de barriga cheia, aqui em ((o))eco, entre outras fontes. Meu ponto aqui é que em todos os continentes, estas extinções estavam basicamente completas há uns dez mil anos, com exceção de um alce irlandês aqui ou uma preguiça gigante acolá. Em todos os continentes, eu disse, mas não nas ilhas.

Nas ilhas ao redor do planeta, as extinções só ocorreram vários milhares de anos depois – pela óbvia razão de que nelas o homem só chegou mais tarde. A megafauna só desapareceu há uns cinco mil anos no Caribe, há uns quatro mil no Mediterrâneo, o mamute há meros 3.700 anos em Wrangel (ao norte da Sibéria) e os moas há menos de mil anos na Nova Zelândia. Mas uma das histórias mais espetaculares e menos conhecidas é a de Madagascar.

Madagascar tinha uma megafauna diferente de tudo – como quase qualquer coisa naquela ilha – e espetacular como poucas. Para começar, havia umas sete espécies de gigantescas aves não voadoras, conhecidas como aves elefantes.

Madagascar 4: as duas biodiversidades

Madagascar é a quarta maior ilha do mundo, com 587 mil Km2 (maior que a Espanha).  Embora fique logo ali ao lado da África, no Oceano Índico, nunca foi conectada com o continente africano, porque era uma parte diferente de Gondwana, o supercontinente sul, de onde se separou há uns 90 milhões de anos. Madagascar é famosa por sua riquíssima biodiversidade, grande parte da qual é endêmica, ou seja, são espécies encontradas apenas lá. A fauna é bem conhecida, inclusive por causa do recente empurrão hollywoodiano. Entre os mamíferos, por exemplo, há uma grande variedade de primatas (lêmures e aye-ayes, entre outros) e os temíveis predadores que são as fossas . Mas não há muitos animais realmente grandes: nenhum lêmur, nem as fossas, tem mais de dez quilos.

O que menos gente sabe é que a biodiversidade atual de Madagascar é apenas um pálido remanescente de uma maravilhosa riqueza perdida. Até pouco mais de mil anos atrás, Madagascar tinha uma megafauna diferente de tudo – como quase qualquer coisa naquela ilha – e espetacular como poucas. Para começar, havia umas sete espécies de gigantescas aves não voadoras, conhecidas como aves elefantes. As menorzinhas, como Mullerornis agilis, tinham só uns 150 Kg. Já Aepyornis maximus chegava a três metros de altura e quase meia tonelada – as maiores de todas as aves conhecidas. Aepyornis foi provavelmente a origem da lenda do Roc, a ave gigante mencionada por Marco Polo em 1298. Entre os lêmures, havia nada menos que umas dezessete espécies hoje extintas, incluindo vários espantosos lêmures gigantes. O maior deles, Archeoindris, chegava a uns duzentos quilos – o tamanho de um gorila. Megaladapis edwardsi, o “koala lemur”, era um pouco menor, talvez uns setenta quilos. Além disso, havia outros bichos estranhos, todos eles nos tamanhos errados – fossas gigantes (Cryptoprocta spelea) com o dobro do peso das atuais, três espécies diferentes de hipopótamos pigmeus dos gêneros Hippopotamus e Hexaprotodon, e tartarugas terrestres de 150 Kg (Aldabrachelys abrupta).

A fossa, exemplo da fauna singular de Madagascar. (Foto: Factzoo.com)
A fossa, exemplo da fauna singular de Madagascar. (Foto: Factzoo.com)

O isolamento salvador desses bichos demorou a acabar: Madagascar foi uma das últimas grandes massas de terra alcançadas pelo homem. Os primeiros colonizadores, ao contrário do que se esperaria, vieram da Indonésia, há uns 2300 anos; os vindos da África só chegaram uns mil anos depois disso. Não há dúvida que após a chegada humana a megafauna foi intensamente caçada; já foram encontrados, por exemplo, vários ossos dos hipopótamos pigmeus e lêmures gigantes com vestígios claros de consumo humano. Correspondentemente, toda a megafauna de Madagascar desapareceu entre a primeira chegada humana e uns mil anos atrás.

Ou melhor… quase toda.

Flacourt escreve que viu, perto do lago Lipomani, o ‘tretretretre’, ‘um grande animal, do tamanho de um bezerro de dois anos de idade, com uma cabeça redonda e uma face de homem’

Flacourt e seu livro

No século XVII, os franceses fundaram entrepostos de comércio na costa leste de Madagascar, e Étienne de Flacourt foi nomeado governador da nova colônia. Flacourt, um francês de Orléans, chegou à ilha aos 41 anos, em 1648. Ele passou os sete anos seguintes de sua vida lá, anos bem difíceis naqueles distantes confins. Flacourt voltou à França em 1655, e acabou morrendo afogado num naufrágio em 1660. Dois anos antes, porém, ele tinha publicado um livro notável, “Histoire de la grande isle Madagascar”.

Teria Flacourt ainda visto uma parte da megafauna perdida de Madagascar? Procurei “Histoire de la grande isle Madagascar” com imensa curiosidade. Google salva: lá estava o livro, disponível gratuitamente. Mas assim que abri o arquivo minha alegria desapareceu. Quinhentas e oito páginas, numa impressão difícil de ler e… em francês arcaico. Qualquer possível menção à megafauna também estava perdida em algum lugar lá dentro.

Felizmente, consegui ajuda de um colega da Guiana Francesa, Benoit Kwata. Agradeço de coração a Benoit, cuja ajuda foi fundamental. Ele conseguiu encontrar e traduzir o que eu estava procurando – algumas passagens que mostram que Flacourt viu, sim, um pouco de um mundo perdido no tempo.

Aepyornis maximus e um ovo fossilizado.
Aepyornis maximus e um ovo fossilizado.

Vislumbres de um mundo perdido

Mas Flacourt também teve contato com algo talvez ainda mais espetacular.  Em outro trecho ele fala de “vouropatra”, que era “…uma grande ave que assombra os Ampatres [uma região no sul da ilha] e põe ovos como os dos avestruzes; para que as pessoas desses lugares não os

Ave elefante com o tamanho comparado com algo quase tão fóssil quanto ela.
Ave elefante com o tamanho comparado com algo quase tão fóssil quanto ela.

peguem, eles procuram os lugares mais solitários”. A referência aos grandes ovos é a pista mais clara: Flacourt teve contato com as aves elefantes, provavelmente Aepyornis maximus. Essa espécie é a ave elefante com datações mais recentes no registro fóssil, até meros 840 (+ 50) anos atrás. Quando os europeus chegaram a Madagascar, seus gigantescos ovos – do tamanho de bolas de futebol – ainda eram muito comuns de se encontrar, e até pelo menos a década de 1980 algumas praias das costas sul e sudoeste ainda eram quase que pavimentadas com as cascas quebradas. Isso tudo sugeria uma extinção muito recente. Tudo indica que Flacourt teve contato com as últimas dessas espetaculares aves gigantes, ainda vivas no século XVII. Incidentalmente, o comportamento que Flacourt descreve para elas, procurando os lugares mais isolados, pode refletir uma resposta à pressão de caça. Mas isso deve ter sido pouco demais, tarde demais, para salvar a ave elefante.

A última máquina do tempo?

Quando Flacourt chegou a Madagascar em 1648, ele nem imaginava que tinha encontrado uma máquina do tempo. Lá, ele foi provavelmente o único homem moderno que teve a chance de ver e escrever sobre os últimos remanescentes de um mundo maravilhoso que perdemos para sempre. Não há mais máquinas do tempo assim – nós já acabamos com todas elas. Mas o futuro está em nossas mãos, e podemos agir diferente. Como será triste se um dia nossos filhos e netos também sentirem falta de uma máquina do tempo, para que pudessem conhecer os tigres, os orangotangos ou as onças-pintadas.

*Com a colaboração de Benoit Kwata

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Comentários 1

  1. nexustheprime diz:

    Fico feliz com os avanços na clonagem que quem sabe tragam de volta o Mamute, espero que um dia esses animais retornem…quem sabe até um Jurassic Park