Análises

Wangari Maathai, uma mulher pelo Quênia e pelas árvores

Em um país pobre e num mundo fechado às mulheres, essa bióloga e Prêmio Nobel da Paz usou sua paixão e força para criar um movimento comunitário de reflorestamento

Giuliana Caldeira Pires Ferrari ·
14 de março de 2017 · 7 anos atrás
Wangari Maathai. Foto: Martin Rowe/Oregon State University
Wangari Maathai. Foto: Martin Rowe/Oregon State University

“Os cidadãos fazem as pequenas coisas e isso é que faz a diferença. Minha pequena coisa é plantar árvores”, Wangari Maathai

 

Quando se fala de heróis e ídolos da ciência, muito se diz sobre o papel dos homens, e pouco, ou menor reconhecimento, é dado às mulheres que estiveram lado a lado dessas figuras históricas. Empunhando a própria ciência, elas lutaram e lutam contra a corrente de um mundo imperiosamente masculino. Os obstáculos não são poucos, mas acredito que, ao contar a história de mulheres importantes para o mundo, seja possível traçar um fio de esperança e motivação às meninas e mulheres do mundo que estejam interessadas na formação de conhecimento científico e na preservação da Natureza. E é com base nesta última que este artigo vos apresenta uma mulher fantástica: Wangari Maathai, a fundadora de um programa aclamado internacionalmente de replantio de áreas inteiras degradadas no Quênia, no Leste da África.

Wangari Muta Maathai nasceu na área rural de Nyeri, Quênia, no dia primeiro de abril de 1940. Estudou em ambientes católicos por toda a vida e após concluir os estudos em uma escola só para meninas recebeu a oportunidade de viajar para os Estados Unidos e estudar na St. Scholastica College em Atchison, Kansas, onde adquiriu o diploma em Ciências Biológicas. Wangari sempre foi apaixonada pela riqueza e diversidade de sua terra natal; quando criança, brincara por entre nascentes de rios e aprendera a respeitar as forças naturais. De volta ao Quênia, Wangari tornou-se a primeira mulher no Leste e Centro da África a ter o título de PhD, e a primeira mulher a ingressar como professora associada e também presidente do Departamento de Anatomia Veterinária da Universidade de Nairóbi.

Em seu livro autobiográfico, Unbowed, Wangari discorre sobre os inúmeros desafios que permearam sua vida acadêmica. Desde o descontentamento e eventuais sabotagens de seus colegas homens que não suportavam ver uma mulher como chefe do Departamento, a dissabores com o então presidente do Quênia, Daniel arap Moi, em uma época de extrema instabilidade política neste país até então unipartidário.

Em 1979, após um complicado e público divórcio, no qual tabloides aproveitaram as declarações de seu marido Mwangi de que ela era uma mulher “impossível de se domar” e com um “gênio muito forte”, Wangari viu-se em um mar de problemas. Foi presa por desacato, desalojada da casa provida pela Universidade devido aos custos do processo e obrigada a deixar os filhos com o ex-marido enquanto tentava arranjar outro emprego.

Em 1982, Wangari foi impedida de assumir o cargo de representante de sua região natal no Parlamento e, quando levou o caso à corte judicial, o juiz presente negou a legitimidade da representação com base em uma acusação ilegal de falta de documentos.

Wangari era parte da tribo dos Kikuyus, a mais populosa do Quênia, e devido a complicações ideológicas pós-colônia, muitos quenianos viam com desconfiança Kikuyus à frente do governo. Assim, quando Wangari se candidatou à presidência do Conselho Nacional de Mulheres do Quênia (NCWK, em inglês), armações políticas impediram por duas vezes seu sucesso, embora ela tenha conseguido o cargo de vice em 1980. Após conseguir finalmente o cargo de presidente do Conselho, o presidente Moi retirou grande parte do apoio financeiro e condenou NCWK à falência.

Muitos poderiam ter desistido após essa onda de infortúnios e sabotagens políticas e pessoais. Wangari tinha o apoio internacional de cientistas e grupos humanitários, mas era odiada por metade do Quênia e virou a persona non-grata de ninguém menos do que o presidente do país.

Cinturão Verde

Em entrevista. Seattle, 2009. Foto:
Em entrevista. Seattle, 2009. Foto: s pants/Flickr
“O plantio de árvores em áreas degradadas não é um simples ato de romantismo ingênuo”

Porém Wangari Maathai não era mulher de desistir. Durante sua estadia no Conselho Nacional de Mulheres, Wangari fundou o The Green Belt Movement (Movimento do Cinturão Verde, em tradução livre) em 1977. Este movimento era uma resposta a um problema ambiental crescente nas planícies anteriormente férteis: os rios estavam secando e as mulheres reclamavam da diminuição de comida, além da dificuldade de conseguir lenha. Wangari percebeu uma linha lógica na situação: os rios morriam porque as árvores que seguravam a erosão do solo eram exploradas maciçamente pela indústria madeireira.

Como bióloga, mulher e humanitária, Wangari sabia que o problema, espalhando-se pelo Quênia, levaria famílias à miséria. Como é comum em situações de insegurança social, mulheres e crianças são os que sofrem o pior baque. Juntando-se a mulheres interessadas em mudar o paradigma, Maathai fundou o movimento e começou uma ação teoricamente simples, mas com um alto poder transformador: plantar árvores.

O plantio de árvores em áreas degradadas não é um simples ato de romantismo ingênuo. Árvores de raízes extensas e profundas seguram as partículas de terra em blocos, impedindo o carreamento de grande quantidade de solo por chuva e vento, além de auxiliarem na criação e manutenção de lençóis freáticos. Em uma perspectiva mais ampla, o replantio de florestas também permite o retorno e a chegada de animais que foram expulsos pela degradação, além de manter a biodiversidade da área e diminuir o risco de extinção de espécies confinadas a pequenos fragmentos florestais.

A sacada genial de Wangari foi aliar a demanda pela restauração das áreas com uma segunda demanda igualmente urgente: dinheiro para as famílias. Maathai angariou um fundo monetário para pagar uma pequena quantia por cada árvore plantada e, reconhecendo a falta de apego à terra como um dos problemas crescentes no Quênia, montou seminários e grupos de discussões para informar os participantes de seus direitos cívicos e envolvê-los na educação ambiental.

Durante a expansão do Green Belt Movement (GBM), Wangari enfrentava problemas financeiros pessoais e dentro do próprio movimento. Um resgate foi provido por Wilhelm Elsrud, da Sociedade Florestal da Noruega, ao oferecer uma parceria com o GBM, e o cargo de coordenadora a Wangari. Com o novo emprego, Maathai foi capaz de deslocar todos seus esforços para o programa. Mais dinheiro permitiu assalariar também os maridos e filhos das mulheres que plantavam árvores, os quais ao serem alfabetizados podiam manter registros precisos das sementes e plântulas plantadas.

Nem mesmo com o sucesso do Movimento Wangari conseguiu se desvencilhar das armadilhas políticas de Moi. No final da década de 80, o presidente insistiu que o Conselho Nacional de Mulheres devia se preocupar apenas com “questões femininas” – ignorando o panorama integrado de fatores sociais e ambientais – o que implicou na saída de Wangari do NCWK para se dedicar exclusivamente ao GBM. Em outubro de 1989, Maathai soube de um plano para construir um complexo midiático no meio do Parque Uhuru, perto do centro financeiro de Nairóbi. Protestos liderados por Maathai foram classificados pelo presidente Moi como liderados por uma “mulher louca” e eventualmente ela foi presa com os demais manifestantes reunidos no parque.

À época Wangari já era reconhecida internacionalmente e pressão foi feita para que ela fosse libertada. Com o reconhecimento de seu trabalho, Wangari conseguiu expandir os trabalhos do GBM e o levou para além do Quênia. Seu objetivo agora era unificar toda a África em um ideal comum: a conservação de suas águas e restauração de suas florestas.

Wangari Maathai. 2007. Foto: Center for Neighborhood Technology
Wangari Maathai. 2007. Foto: Center for Neighborhood Technology/Flickr

Wangari representa a junção necessária do pensamento ecológico com as demandas humanitárias em um planeta abarrotado. Ela sabia que não se pode resolver um problema ambiental sem trazer os habitantes das áreas próximas à causa e sem mitigar e aliviar os efeitos negativos de uma população exposta a diversos problemas sociais. A derrubada de florestas inteiras tem alterado o ciclo de chuvas e condenando áreas degradadas a secas prolongadas, em um processo conhecido como desertificação.

Os problemas enfrentados pelo Quênia na época, e que infelizmente se estendem até hoje, não são exclusivos deste país africano: séculos de políticas expansionistas imperialistas nas Américas, na África e na Oceania, aliadas a posteriores governos corruptos e mal gerenciamento de recursos, criaram uma matriz complexa de áreas densamente povoadas encravadas em hotspots de biodiversidade cada vez mais ameaçados. Hoje, desertificação e fragmentação de habitat por espécies exóticas são as principais ameaças à biodiversidade do planeta; de certa forma, ações integradas como a de Wangari Maathai não são apenas inspiradoras: são o símbolo de uma necessidade.

Wangari Maathai deixou um extenso legado. Escreveu 4 livros e ganhou cerca de 50 prêmios nacionais e internacionais – incluindo o Nobel da Paz de 2004 pelo seu trabalho humanitário, e o Conservation Scientist Award da Columbia University (USA) no mesmo ano. Em 2009 Wangari foi nomeada Mensageira da Paz pelas Nações Unidas, levando a mensagem de plantio baseado em comunidades locais pelo mundo. Mas as vidas de símbolos mundiais também são finitas, e em 25 de setembro de 2011, aos 71 anos, Wangari faleceu devido a complicações de um câncer nos ovários. Entretanto, o GBM continua vivo e em ação.

O legado de Wangari Maathai nos ensina a incentivar as meninas a também sentirem amor pela ciência, e o GBM continua vivo e em ação. Em um mundo urgente por medidas de conservação ambiental a longo prazo, e por mudanças na mentalidade pública quanto aos problemas ambientais de sua região, precisamos sim de mulheres de “gênio forte”. Política e ambientalismo nunca foram assuntos excludentes para Maathai. Por que seriam? Estratégias de conservação baseadas única e exclusivamente em áreas isoladas são cada vez mais uma raridade. É preciso engajar a sociedade para realizar projetos efetivos e duradouros. Mais que isso, precisamos de pessoas apaixonadas pela natureza e sua biodiversidade, que combatam a corrente de destruição com afinco e empatia. E empatia, para a mulher incrível que foi Wangari Maathai, é a palavra que reverbera.

 

 

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Comentários 9

  1. BIBIANA HOFFMANN diz:

    Ótimo texto! Você teria como me passar as referências bibliográficas que utilizaste?


  2. Cida Luiz diz:

    Concordo com a ideia de traduzir os livros de Wangari!!!!


  3. Cida Luiz diz:

    Parabéns pelo texto e pela iniciativa. Precisamos muito mesmo de "pessoas apaixonadas pela natureza e pela biodiversidade".
    Estou prestes a me aposentar e tenho o sonho de contribuir com esta causa. Nosso planeta, nossa casa, está implorando. O tempo urge!!!!
    Abraço a todos.


  4. Arno Rochol diz:

    Parabéns, Giuliana, pela postagem. Conheço e admiro o trabalho de Wangari há mais anos, mas só agora vim ler a autobiografia dela "Unbowed. A memoir", em alemão, "África, minha vida. Lembranças de uma rebelde". Pesquisei e vi que ainda não há uma tradução da obra em português. Uma pena. Será que não se poderia fazer uma campanha para inspirar ou animar alguma editora a traduzir o livro? A história de Wangari Maathai é fascinante e inspiradora e mereceria – urgentemente – uma tradução.


  5. Josiane diz:

    Maravilhoso texto e maravilhosa a inspiração!
    Viva Wangari!


  6. TETE diz:

    Excelente texto para contar uma linda e inspiradora história.


  7. Maria Pistori diz:

    Maravilhoso! Realmente um história e um texto inspirador que nos encoraja à continuar lutando por sistemas sócio-ecológicos, mesmo diante dos MUITO obstáculos que por vezes nos desacreditam!


  8. Parabéns pelo texto Giuliana e muito obrigada por compartilhar as informações dessa mulher incrível (que pro meu azar eu não conhecia até este momento) e deste trabalho igualmente sensacional. E certamente, enquanto mantivermos política e conservação como assuntos completamente opostos não conseguiremos mudar o rumo do nosso planeta. Abraços,


  9. paulo diz: