Análises

Medicamentos e Meio ambiente: soluções individuais, problemas coletivos

Os efeitos que são reportados em organismos aquáticos e terrestres já são suficientes para demonstrar que a preocupação com a saúde humana deve existir

Foto: Josué Goge/Flickr.

Você sabia que o uso intensivo de medicamentos tem transformado resíduos destes compostos em poluentes comuns nos ambientes aquáticos? As consequências ambientais deste tipo de poluição ainda são pouco conhecidas, mas diversos estudos já indicam efeitos na reprodução e mobilidade de organismos, mesmo em baixas concentrações no ambiente. Mas devemos pensar: como os medicamentos que eu consumo chegam até o ambiente? Isso realmente é uma questão que envolve toda a sociedade. A entrada de medicamentos no ambiente via lixo comum pela população é uma forte contribuição para contaminação ambiental. Precisamos pensar que todos nós temos uma cota de contribuição para que esses medicamentos cheguem até o ambiente e que podem voltar para nós pela água potável. Portanto, o uso indiscriminado, desde a automedicação até o descarte indevido, precisa ser controlado, e isso é uma atitude que pode ser repensada por cada um de nós.

A população mundial tem aumentado e, com isso, o consumo de medicamentos se torna maior. Além disso, o aumento da expectativa de vida dos seres humanos e a consequente inversão das pirâmides de idade populacionais têm aumentado proporcionalmente ainda mais o consumo de medicamentos. As pessoas idosas consomem mais medicamentos, uma vez que o organismo já não funciona tão bem e o índice de doenças crônicas é mais alto nesta população. No Brasil, esse aumento é nítido: entre 2002 e 2016, a população aumentou de 180 para 205 milhões de pessoas, com maior percentual proporcional de idosos; no mesmo período, a venda de medicamentos passou de 500 milhões de unidades (caixas) para 3,5 bilhões, segundo dados do IBGE e do Sindicato das Indústrias Farmacêuticas (Sindusfarma). Por sua vez, esse aumento de consumo aumenta a geração de resíduos. Uma vez no ambiente, estes resíduos se comportam como contaminantes e podem ser tóxicos a diversos organismos, inclusive a espécie humana. Os seres humanos ficam expostos aos resíduos de fármacos por meio da água potável e via alimentação, como os peixes. Nesse sentido, os resíduos de medicamentos também podem poluir águas superficiais e subterrâneas, solos e ar.

Medicamento na água é problema

Dezenas de frascos de medicamentos jogados em estrada no Paraná. Foto: Câmara Municipal de Guaíra.

Os resíduos de medicamentos atingem os corpos hídricos de várias maneiras: pelo descarte incorreto de medicamentos, uso intensivo de medicamentos na medicina veterinária e a não remoção completa dos resíduos de medicamentos nas estações de tratamento.

Após sua utilização, seja na medicina humana ou na veterinária, os medicamentos são excretados pelos organismos diretamente para o ambiente, sendo transportados para os corpos hídricos, ou, quando as excreções são coletadas e tratadas, passam por estações de tratamento de esgoto (ETEs). Nestas estações, normalmente os resíduos de medicamentos não são removidos completamente devido à tecnologia ineficiente, e assim, também acabam alcançando o ambiente. As águas contaminadas pelos resíduos de medicamentos podem ser utilizadas para produção de água potável. Nas estações de tratamento de água (ETAs), a mesma situação pode acontecer, ou seja, devido a tecnologias ineficientes, os resíduos de fármacos podem ser encontrados na água potável. Todos os medicamentos são formulados para provocar um efeito, assim, eles podem atravessar as barreiras biológicas dos organismos para chegar até o órgão afetado. Logo, devemos pensar que no ambiente eles também podem resistir a barreiras e a degradação, sendo persistentes. Além disso, algumas destas substâncias apresentam tendência cumulativa, ou seja, elas podem acumular pela cadeia trófica, sendo essa uma via de contaminação para os seres humanos – ao se alimentar de outros animais. O descarte indevido de medicamentos ou das suas embalagens também resulta em uma importante via de contaminação ambiental. Uma visão esquemática desse conjunto de processos é mostrada na Figura 1, adiante.

Figura 1. Vias de entrada e destino dos resíduos de medicamentos no ambiente.

Apesar da problemática envolvida, a detecção e quantificação de medicamentos no ambiente ainda são restritas em determinados países. A detecção dessas substâncias só foi possível devido aos avanços dos métodos analíticos, já que geralmente são encontrados no ambiente em baixas concentrações, na ordem de ng L-l e µg L-1 (Figura 2). Normalmente, nos rótulos de bebidas que ingerimos diariamente, vemos as concentrações em miligrama por litro, o que significa que estamos falando de concentrações de mil a um milhão de vezes menor do que isso.

Figura 2. Concentrações ambientais de diversos medicamentos reportadas em águas superficiais de diferentes países (Brasil, Canadá, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos).

Porém, não podemos nos enganar, mesmo em baixas concentrações, alguns estudos já apontam efeitos tóxicos dessas substâncias em alguns organismos aquáticos. Os hormônios são capazes de causar alterações sexuais, como, por exemplo, hermafroditismo e feminização em peixes. O Ibuprofeno (terceira droga mais popular do mundo!) foi capaz de alterar os padrões de reprodução de peixes em concentrações detectadas no ambiente. O antidepressivo Fluoxetina demonstrou ser capaz de alterar o comportamento dos peixes na fuga de predadores. Estas são somente algumas consequências já evidenciadas em laboratório, existem vários estudos com outros organismos e outras substâncias, mas ainda há muito que fazer.

Além dos efeitos isolados, estudos têm demonstrado que estes compostos podem ter efeitos sinergéticos, isto é, duas ou mais substâncias juntas podem potencializar seus efeitos. Por exemplo, os anti-inflamatórios ibuprofeno e diclofenaco podem aumentar ainda mais a mortalidade de Daphnia magna (microcrustáceo). Assim, a preocupação se agrava, uma vez que essas substâncias são sempre encontradas no ambiente em misturas. Além disso, precisamos pensar que a introdução no ambiente aquático de substâncias químicas sintéticas envolve uma enorme variedade de compostos e os efeitos sinérgicos podem ocorrer – inclusive com outras classes como metais pesados e pesticidas. Outra questão é que a entrada dos medicamentos é constante no ambiente e os organismos ficam expostos de forma contínua. Ainda sabemos pouco sobre as consequências que podem ocorrer à longo prazo e os efeitos não são detectados em bioensaios de curto período.

A legislação e a má gestão

No Brasil, o descarte indevido de medicamentos é consequência de um conjunto de fatores relacionados à má gestão, ausência de fiscalização farmacêutica e leis mais rigorosas. Normalmente, os pacientes não podem adquirir o número exato de comprimidos exigidos pelo tratamento, o que resulta em descarte dos medicamentos não utilizados. Além disso, temos o problema da automedicação, um mau hábito que resulta, muitas vezes, em um aumento desnecessário do consumo. Ainda assim, não há legislação brasileira de obrigatoriedade por parte dos estabelecimentos para apresentar pontos de recolhimento dos medicamentos em desuso ou vencidos, o que resulta em descarte incorreto em lixo comum ou nas redes de esgotamento sanitário.

Iniciativas importantes, bons exemplos devem ser seguidos!

Ibuprofeno e diclofenaco podem aumentar ainda mais a mortalidade de Daphnia magna (microcrustáceo). Foto: Wikipédia.

No Brasil, podemos encontrar algumas iniciativas de descarte correto de medicamentos. O estado de São Paulo, por exemplo, estabeleceu uma parceria entre prefeitura e empresas privadas para o recolhimento de medicamentos em supermercados e farmácias. A empresa Brasil Health Service possui o “Programa Descarte Consciente” que apresenta estações coletoras em alguns estabelecimentos participantes das regiões Nordeste, Sul e Sudeste. Ainda podemos citar programas como o “Papa Pílula”, realizado pelo Serviço Social da Indústria de Santa Catarina. Estas atividades são imprescindíveis para auxiliar a população em relação ao descarte correto dos medicamentos. Além destas iniciativas, podemos encontrar no Brasil, outras localidades que recorreram também a implementação de sistemas de coletas, mas desta vez fixados em lei, são os casos do Acre, Ceará, Distrito Federal, Juiz de Fora, Paraíba, Paraná e Rio Grande do Sul.

Outros países apresentam exemplos do uso de medidas bem-sucedidas, mostrando como uma correta gestão torna possível a logística reversa e a responsabilidade compartilhada dos resíduos de medicamentos. A Itália foi o primeiro país da Europa, a estabelecer um sistema de coleta de medicamentos na década de 70 com a criação da empresa Assinde Servizi. A França apresenta o sistema de coleta de medicamentos vencidos denominado Cyclamed, o qual obriga as indústrias a eliminarem os resíduos de embalagens domésticas que coloca no mercado. O Canadá possui Post-Consumer Pharmaceutical Association, uma organização sem fins lucrativos que desde 1999 realiza coletas e conta com o apoio de empresas de pesquisas farmacêuticas.

Olhando para o futuro… um salto para o futuro dos medicamentos no ambiente

Os efeitos que são reportados em organismos aquáticos e terrestres já são suficientes para demonstrar que a preocupação com a saúde humana também deve existir. E o que nós, como cidadãos, podemos fazer? Uso consciente de medicamentos. Evitar a automedicação e seguir corretamente as orientações das prescrições é fundamental. Além disso, podemos nos conscientizar e cobrar das nossas prefeituras um local para disposição de medicamentos vencidos e/ou não utilizados. Precisamos investir mais tempo em maneiras de prevenir que estas substâncias cheguem ao ambiente. Algumas formas de se prevenir são: a questão de conscientização individual, divulgação da problemática, trabalhos de educação ambiental envolvendo descarte correto, adequação da legislação e investimento em fiscalização. Estas medidas ajudarão no desenvolvimento de cidadãos mais críticos, que reivindiquem e cobrem medidas mais eficientes.

Ainda assim, precisamos de mais estudos de detecção ambiental, de efeitos destes resíduos em organismos para determinar concentrações legais de descarte, assim como estudos que ajudem na divulgação desta problemática. Não menos importante é o investimento em técnicas eficientes de remoção destes compostos das estações de tratamento e criação de medicamentos que degradam facilmente no ambiente. Todos devemos pensar que estas substâncias vão para o ambiente, portanto, devemos certificar que elas sejam menos tóxicas possível.

 

Gabrielle Rabelo Quadra, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Rafaela dos Santos Costa, mestre em Dinâmica dos Oceanos e da Terra pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Helena de Oliveira Souza, mestre em Ciências Ambientais e Conservação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Marcos Antonio dos Santos Fernandez, doutor em Química pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor associado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

 

 

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Comentários 15

  1. Patrícia diz:

    Olá possuem os artigos de referencias utilizados para mostrar as substâncias encontradas nos países


    1. Gabrielle diz:

      Olá Patricia, deixo aqui o link de uma base de dados internacional, que é iniciativa de pesquisadores da Alemanha &lt ;https://www.umweltbundesamt.de/en/database-pharmaceuticals-in-the-environment-0>. Obrigada pelo seu comentário.


  2. Extremamente pertinente a matéria, sou um dos fundadores da PegMed, startup de destinação sócioambiental de medicamentos. Temos 2 frentes de trabalho: Uma em que pegamos a sobra na validade da indústria farmacêutica e doamos à instituições de caridade e outra onde há troca de medicamentos na validade, entre pessoas físicas. http://www.pegmed.com.br


    1. Gabrielle diz:

      Olá Rodrigo, muito obrigada pelo comentário e parabéns pela iniciativa, achei muito bacana.


  3. Mauri diz:

    Vi numa reportagem do Discovery que o urubu foi extinto na ìndia e Paquistão porque nestes países começaram a tratar o gado com diclofenato, e este medicamento destroi o fígado das aves.
    Com a extinção dos urubus as carniças passaram a ficar expostas por mais tempo e foram consumidas por cães e ratos gerando assim um epedimia de raiva. Faz anos que não vejo pardais em São Paulo e agora noto que estão sumindo pombos, sabiás, cambacicas e outros pássaros.


    1. Gabrielle diz:

      Mauri, os impactos dos fármacos na fauna são preocupantes, mas mesmo assim, pouco ainda é feito em termos de políticas ambientais. Nós vamos tentar continuar alertando a sociedade e chamar atenção dos tomadores de decisão, pois é essencial controlar estes resíduos. Obrigada pelo comentário!


  4. Parabéns pelo post. Extremamente preocupante. Abraço das amigas da https://www.magazinefeminina.com/


    1. Gabrielle diz:

    1. Gabrielle diz:

  5. Joe Roseman diz:

    Estão de parabéns pelo estudo, embora muitos tópicos importantes não tenham sido abordados (creio que o tamanho da reportagem não tenha permitido). Os impactos no Meio Ambiente (fauna e flora) já tem estudos suficientemente alarmantes. O impacto nos seres humanos, apesar de insípido, também já apresenta razões de preocupação, bem como o comprovado aumento da resistência de certos microorganismos à antibióticos.

    A incineração, além de não ser feita como deveria (dois fornos kiln; primeira incineração a 1500 C, por 20 segundos e a segunda incineração, no segundo forno, a 1100 C, por 12 segundos), gera dioxinas e furanos que, além de não capturáveis pelos filtros das chaminés disponíveis (até o momento), consomem enorme quantidade de Oxigênio e ferem o princípio básico da Lei de Lavoisier.

    Os resíduos medicamentosos sólidos deveriam ser inertizados e reaproveitados, por exemplo, na manufatura de tijolos para programas de habitação. Os aterros existentes no Brasil não são, em sua maioria esmagadora, sanitários (NÃO TÊM AS MANTAS PROTETORAS DE SOLO E, muito menos, o "testemunho"). Adicionalmente a isso, vemos um jogo de superfaturamento de medicamentos, que envolve os laboratórios e autoridades governamentais, responsáveis pelas licitações. Os medicamentos são comprados e praticamente "esquecidos", para que as compras continuem.

    De tudo, o mais grave é observado na percepção que os órgãos governamentais, ditos competentes para lidar com o tema, divulgam que medicamentos podem fazer mal, caso consumidos após a data de validade, sugerindo que o princípio ativo se torne venenoso logo após a expiração da validade!!! Nada pode ser tão enganador quanto esta sugestão tácita. Há exemplos do laboratório Bayer, de Aspirinas expiradas por mais de 15 anos que, ao serem examinadas mantinham 90% de sua potência; mais do que suficiente para cumprir sua função.

    Eu sou, Joe Roseman, um dos responsáveis pela implantação do Programa Descarte Consciente de Medicamentos (da BHS – Brasil Health Service), em mais de 400 pontos, espalhados pelo Brasil, que coleta cerca de DUAS TONELADAS de resíduos medicamentosos.

    Caso vocês desejem informações adicionais, que acrescente conhecimento, ao trabalho de vocês, por favor, não hesitem.


    1. Gabrielle diz:

      Muito obrigada pelos comentários e por adicionar conteúdo para nós, Joe Roseman. É difícil tratar de toda a problemática sobre os fármacos em um só artigo, visto que é um tema bem complexo e amplo. Com certeza ainda temos muito o que fazer, mas a sensibilização da sociedade é um passo muito importante. Obrigada mais uma vez pelo seu comentário.


  6. José Reinaldo diz:

    Texto incrível!!!

    O tema apresenta uma problemática a nível global, e que deve atingir não somente os tomadores de decisões mas também toda população mundial!

    Parabéns aos autores pelo trabalho.


    1. Gabrielle diz:

      Muito obrigada pelo comentário positivo, José Reinaldo.


      1. rodrigo diz:

        boa noite gabrielle, estou realizando um tcc pela marinha sobre LR de medicamentos, gostei muito do artigo, será que poderiamos nos falar pelo email.