Análises

Cerrado: dores e amores aos 65 milhões de anos

Sou um gigante, meu domínio cobre 22% do seu país, o Brasil. Mas metade de mim se foi e 600 das minhas espécies correm risco de extinção. Exijo respeito

Rafael Loyola ·
11 de setembro de 2016 · 8 anos atrás
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Parque Nacional da Serra da Canastra, Minas Gerais. Foto: Galcan/Wikiparques (CC)

Hoje é meu aniversário. Nasci há aproximadamente 65 milhões de anos e cheguei à minha vida adulta há cerca de 40 milhões de anos; não conto os anos mais. Floresci em meio a tempestades e incêndios, climas quentes e frios, sobrevivi à Era do Gelo e expandi e contraí meus limites ao longo do tempo. Vi os dinossauros se extinguirem e convivi, em seguida, com as mais improváveis variedades de animais imensos. Preguiças gigantes de cinco toneladas, mastodontes – os bisavôs dos elefantes, e gliptodontes, tatus enormes do tamanho do que hoje vocês, humanos, chamam de carro.

Ah… os humanos. Vi vocês chegarem há uns 11 mil anos. Vi vocês comerem dos meus frutos, se deliciarem com o araticum, o cajuzinho-do-cerrado, as castanhas de baru. Vi vocês caçarem animais gigantes e testemunharem seu declínio e extinção devido à essa caça e às mudanças climáticas. Vi vocês descansarem de suas caçadas e batalhas à sombra dos meus buritis, nas minhas veredas frescas à margem dos meus rios.

“Alimento, milênio a milênio, as três maiores bacias hidrográficas do continente sul-americano. Cuido de nascentes das bacias Amazônica, do São Francisco e do Prata”

Assim como os animais que em mim habitaram, sou um gigante. Hoje, meu domínio cobre 22% do seu país, o Brasil. Meus limites estendem-se sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal, além de porções no Amapá, Roraima e Amazonas. Sobre estas porções de terra estendo meu tapete de gramíneas e arbustos, minhas florestas, ergo minhas serras, planaltos e tabuleiros e derramo meus rios, lagos, pantanais e veredas.

Alimento, milênio a milênio, as três maiores bacias hidrográficas do continente sul-americano. Cuido de nascentes das bacias Amazônica, do São Francisco e do Prata. Meus rios subterrâneos correm por toda minha extensão e se acumulam nos aquíferos Guarani e Bambuí, fornecendo água para plantas, animais e pessoas que de mim dependem. Em meu domínio há altíssima diversidade biológica, comparável às de minhas vizinhas Amazônia e Mata Atlântica. Forneço abrigo, solo, clima e água a mais de 13.000 espécies de plantas. Meu solo é pobre, mas elas não me julgam por isso. Ao contrário, 44% de minhas plantas vivem exclusivamente dentro dos meus limites. Somos íntimos. Suas raízes tocam profundamente em minha alma, retiram de lá o que lhes dá a vida e devolvem generosamente essa dádiva em forma de água e carbono, armazenados em suas raízes, folhas, frutos… assim sobrevivemos às mudanças climáticas passadas e enfrentaremos as atuais e futuras.

Os rios voadores que vêm da Amazônia são gentilmente levados às minhas profundezas por essa floresta invertida que me dá vida e atrai metade de todas as aves do Brasil. São mais de 850 espécies, incluindo o suiriri, a anhuma, as emas, as siriemas, os arapaçus, beija-flores e sanhaços. Metade dos répteis que rastejam pelo país sobrevivem em meus domínios; 17% dessas 180 espécies decidiram ficar para sempre em minha casa, sendo exclusivas daqui. O mesmo acontece com os mamíferos, com suas mais de 200 espécies. Animais únicos como o lobo-guará, a onça-pintada, e também aqueles que não têm nomes compostos como a ariranha, os gambás e macacos. Assim como cuidei dos gigantes, cuido pacientemente dos pequenos. Centenas de espécies de formigas, inúmeras libélulas, cupins, besouros, minhocas e minhocuçus, aranhas e ácaros vêm desfrutando de minha companhia, por séculos e séculos.

“será que essas mesmas pessoas que me usam não entendem que sem minha biodiversidade, sem meu solo, sem minha água nada disso tem futuro? “

Cultivo a amizade das plantas e animais, mas meu amigo mais antigo ainda é o fogo. Minhas plantas aprenderam como sobreviver a seus ataques repentinos. Seus troncos tortuosos, cascas grossas e raízes profundas são uma forma que encontraram de perdoá-lo e dizer que mesmo após sua visita, a vida floresce e volta ao normal. Os animais ainda reclamam muito dele. Choram seus parentes perdidos. Ainda assim, o fogo é meu amigo. Aprendemos a nos respeitar, a conviver com nossas diferenças e superar nossas dificuldades por milênios a fio.

Mas agora estou ficando cansado. Metade de mim já se foi. A chegada do Homem mudou minha relação com meus amigos, até com o fogo. Já não consigo sustentar mais de 600 espécies de plantas que estão ameaçadas de extinção. Já não consigo me revigorar em áreas onde meu solo foi convertido, compactado, meu manto de árvores e gramíneas retirado, minha água desviada. As pessoas me chamam de “celeiro nacional”; por minha causa o Brasil é o 2o maior produtor de alimentos do mundo. Mas em companhia do eco de milhares de cavidades subterrâneas tão lindas e ricas em diversidade quanto o que há em cima do meu solo me pergunto retoricamente: será que essas mesmas pessoas não entendem que sem minha biodiversidade, sem meu solo, sem minha água nada disso tem futuro? Nada disso tem valor? Para onde irão minhas espécies? Para onde irão os polinizadores, dispersores, predadores que mantém os cultivos em pé? Por que usam minha riqueza para gerar tanta pobreza?

Não estou ficando velho; quando vocês se forem ainda estarei aqui, mas confesso que estou ficando emotivo. Quero reestabelecer nossa amizade, e entregar seus alimentos de forma gratuita. Preciso de vocês para restaurar minhas florestas e campos, para reservar minha água, para manter a confiança de milhares de espécies de animais e plantas que dependem de mim. Juntos vamos sobreviver, mas preciso de algo. Em meu aniversário quero apenas um presente: o seu respeito. Respeito pelo meu futuro e pelo futuro dos seus filhos e de suas gerações. Respeito por mim, o Cerrado.

 

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    Diretor Executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade, professor na UFG e membro da Academia Brasileira de Ciências

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Comentários 23

  1. Valdecira Costa diz:

    Lindo documentário. Estou cursando fotografia e meu trabalho final será sobre o Cerrado Brasileiro. Gostaria de discutir o assunto contigo. Como posso fazer?


  2. Maria Hilda diz:

    Texto muito lindo. Vou compartilhar. Outros precisam ler e refletir sobre o que acontece com o cerrado.


  3. Sabrina de Freitas diz:

    Amei! Precisamos salvar o Cerrado! Precisamos parar de comer carne! O planeta não é do homem, são de todos, inclusive dos que nem nasceram.


  4. Thales diz:

    Parabéns!!! Excelente texto que aviva o sentimento de proteção ao cerrado… 👏👏👏👏


  5. A. Araujo Murakami diz:

    Romantico, conocer y cientifico es este texto, felicidades.


  6. Rosangela Correa diz:

    Boa tarde Rafael,
    Eu coordenei o trabalho do dvd Alfabetização Ecológica: ABCERRADO e agora estou fazendo a segunda versão, eu gostaria de incluir o seu texto, seria possível?
    Se você puder me responder diretamente para o meu e.mail: [email protected]
    Att,
    Profa Dra Rosângela Corrêa
    Faculdade de Educação
    Universidade de Brasília


  7. Lara Emídio diz:

    Ótima reflexão. Belíssimo texto!
    Salve a Pachamama!!!


  8. CAIO CÉSAR N. SOUSA diz:

    Excelente reflexão…parabéns!


  9. Ótimo texto, Rafael!
    Escreveu como um sábio ancião sobre este ancião que é o Cerrado.
    Como disse o Fabio Scarano, se as pessoas entendem elas se interessam, mas se sentem, elas se envolvem.


    1. Obrigado, Onildo! É isso aí… abraço!


  10. Obrigado Milano, Maíra, Fernanda, Keila e "Da ecologia"… como diz o Reuber, precisamos nos unir pelo Cerrado. Abraço!


  11. Da ecologia diz:

    Primeiramente, fora TEMER. Olha só… Prof Loyola e seu lado fofinho. Perfeito texto! O Cerrado necessita de nossas vozes! Ele quer GRITAAAAAR. Está em nossa face o que estamos fazendo para ter estas consequências, consumismo louco, sem cautela, é um modelo novo de carro, um aparelho tecnológico que, intencionalmente pela indústria, tem uma péssima durabilidade, é a roupa da moda…. E blá blá blá… Queria poder dizer que estamos com uma ótima geração de jovens que cuidarão do futuro do planeta Terra, mas… Não acontece na prática. As preocupações deles são muito supérfluas. Está tão na cara que estamos com os dias contados que a NASA está se preocupando com além planeta…. Marte, o Exoplaneta Proxima B… E assim vai… Em fim… Be continued… São muitas questões que devem ser trabalhadas!

    Câmbio desligo.


    1. Mãe da ecologia diz:

      Desculpa, gente. Era pra ter dado o remédio dele mais cedo. Esqueci…


  12. Keila diz:

    Parabéns pelo texto, fiquei emocionada, temos que divulgar junto à população.
    Faltam textos assim no Brasil, que cativam de um jeito fácil! Para as pessoas comuns abraçarem a conservação


  13. Fernanda Brum diz:

    Vontade de abraçar esse Cerrado!!!


  14. maíra dalia sagnori diz:

    Excelente texto!!! Cheio de emoção, ciência e verdades!!!


  15. Miguel Milano diz:

    Parabéns Rafael. Belo e cativante texto – assim é melhor te ler. MM


  16. Obrigado, Reuber, Wanderlei (Jaca) e Maurício! Um abraço!


  17. Mauricio Mercadante diz:

    Parabéns pelo texto, Rafael.


  18. WANDERLEI FERNANDES diz:

    Esse cerrado é demais tem até e Jacaré que é amigo de biólogo, pode?


  19. Reuber diz:

    Lindo texto! Excelente combinação de informação cientifica e reflexão.