Análises

A renúncia da União na gestão ambiental brasileira

O patrimônio ambiental brasileiro deveria ser encarado como interesse estratégico da União. Mas  nem mesmo o presidente do IBAMA e a ministra do Meio Ambiente se dispõem a defendê-lo.

Joaquim Maia Neto ·
10 de novembro de 2011 · 12 anos atrás
Reunião entre MMA, IBAMA e Secretaria de Meio Ambiente de SP, na qual foi selada a descentralização da gestão da fauna. Foto: Divulgação MMA/Jefferson Rudy
Reunião entre MMA, IBAMA e Secretaria de Meio Ambiente de SP, na qual foi selada a descentralização da gestão da fauna. Foto: Divulgação MMA/Jefferson Rudy
“Antes da aprovação do PLC 1/2010, o enfraquecimento do IBAMA vinha acontecendo, sobretudo, pela forte ingerência política sobre a autarquia, inclusive na indicação de dirigentes, pelas campanhas de difamação contra a entidade, acusada injustamente de emperrar o desenvolvimento”

Antes da aprovação do PLC 1/2010, o enfraquecimento do IBAMA vinha acontecendo, sobretudo, pela forte ingerência política sobre a autarquia, inclusive na indicação de dirigentes, pelas campanhas de difamação contra a entidade, acusada injustamente de emperrar o desenvolvimento, e pelos ataques de setores do próprio governo, como a Casa Civil e Ministérios da Agricultura e Minas e Energia. Esses fatores atuariam contra o IBAMA mesmo num cenário de não divisão, de modo que a criação das outras instituições vinculadas ao MMA pouco contribuiu para isso. O grande perigo que paira sobre a área ambiental é o outro processo, este sim, extremamente nocivo, do qual a aprovação do PLC 1/2010 é o episódio mais recente. Trata-se da descentralização da gestão ambiental da União para os demais entes federativos. A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer o município como ente federado, instituiu certa descentralização política. A proteção ao meio ambiente entrou no rol das competências comuns, dispostas no artigo 23. Essa descentralização não foi ruim, pois estava em consonância com o artigo 225 que objetiva atribuir a responsabilidade sobre o meio ambiente a toda a sociedade, incluindo o poder público em todas as suas esferas. Foi necessária a publicação da Lei 7804, em 1989, para adequar a Política Nacional do Meio Ambiente à nova realidade, já que a Lei 6938 que a instituiu é de 1981, quando vigia outra constituição.

Os problemas começaram em 1998. Com a hegemonia neoliberal ocorrida durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, houve enfraquecimento do Estado, especialmente na esfera da União. Naquele ano, aproveitando-se da atuação crescente de alguns estados e municípios na área ambiental, muitos escritórios regionais do IBAMA foram fechados, sob o argumento que sempre é repetido pelos administradores da vez, o de que “o IBAMA deveria cuidar dos assuntos de interesse da União”. No início do governo Lula, o MMA implementou um programa de fortalecimento do SISNAMA, que tinha como foco a capacitação dos gestores municipais de meio ambiente e a criação das Comissões Tripartites. O objetivo era resolver conflitos de competência e incentivar o engajamento dos municípios no licenciamento ambiental. Desde então, o próprio MMA e as sucessivas direções do IBAMA vêm trabalhando num processo autofágico de descentralização administrativa. Mais escritórios foram fechados e competências foram delegadas por meio de convênios como, por exemplo, com polícias militares na área de fiscalização e com secretarias estaduais de meio ambiente nas áreas de controle florestal e de gestão, manejo e autorização de criadouros de fauna silvestre. Ao aceitar, ou melhor, ao fomentar um nível crescente de descentralização administrativa, MMA e IBAMA provocaram o acirramento da descentralização política que se configura com a Lei aprovada no Senado.

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A queixa da ministra Izabella Teixeira é fruto da sua própria política. Ela própria, indiretamente, disse à sociedade que a União deve atuar menos na área ambiental. É sintomática a manifestação do presidente do IBAMA, em carta dirigida aos servidores da autarquia, na qual avalia que a Lei aprovada não é tão ruim assim e que afirma que, juntamente com a ministra, trabalhará pelo veto ao famigerado artigo 17. Ora, se na avaliação de seu presidente o IBAMA poderá continuar fiscalizando, por que pedir o veto? Ele afirma que se não houver o veto, não há grandes prejuízos. Qualquer um que se dignar a ler o artigo 17 da Lei aprovada e que conheça minimamente como se dão as coisas no âmbito da fiscalização, saberá que a maioria dos estados autuará justamente onde o IBAMA tenha autuado para que prevaleçam os autos de infração estaduais. Se o objetivo maior do IBAMA não é a esfera administrativa, como afirma o presidente (“eventual duplicidade de autuação atingirá unicamente a cobrança da multa, que não é nossa atividade finalística”), então não precisamos do IBAMA, bastam as polícias, militares e judiciárias, e o Ministério Público.

O veto ao artigo 17 é absolutamente insuficiente. O artigo 7º, XIII restringe as competências da União ao controle e fiscalização das “atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União”. Até mesmo o Instituto Chico Mendes perderá a competência para fiscalizar empreendimentos ou supressão de vegetação nativa nas Áreas de Proteção Ambiental federais e nas zonas de amortecimento de suas unidades de conservação quando o licenciamento ou autorização de tais atividades estiver a cargo dos estados ou municípios. Além disso, no projeto há várias restrições no âmbito do licenciamento. Precisamos do veto integral ao projeto, mas isso parece quase impossível, já que nem mesmo o presidente do IBAMA e a ministra se dispõem a defendê-lo.

O patrimônio ambiental brasileiro deveria ser encarado como interesse estratégico da União. Para tratá-lo assim, não são necessárias mudanças constitucionais. A nossa Carta Magna já permite uma regulamentação que atribua mais poderes à União na área ambiental. O artigo 225, § 4º considera vários biomas como patrimônio nacional. A competência fiscalizatória comum está garantida no artigo 23 e não precisaria ser assassinada. No âmbito do licenciamento, poderíamos garantir à União a atuação nos empreendimentos que já são constitucionalmente do seu interesse, entre eles os que explorem os seus bens (artigo 20 da CF), como terras devolutas, rios federais, potenciais hidrelétricos, minerais, cavernas e rodovias federais. Também deveriam estar entre as atribuições da União os licenciamentos de empreendimentos cuja competência para explorar ou autorizar é da própria União (artigo 21 da CF), como indústria bélica, portos, geração de energia elétrica, etc. O projeto original do deputado Sarney Filho (PV-MA) que foi desfigurado, direcionava neste sentido.

Nossa biodiversidade é o grande diferencial do Brasil e poderia ser aproveitada racionalmente para nos tornar uma potência ambiental, garantindo um desenvolvimento sustentável, que é bem diferente do atual modelo de crescimento, calcado na exportação de commodities. Isso é interesse da União, e sua gestão jamais poderia ser delegada a estados e municípios, principalmente no cenário brasileiro permeado por todo o tipo de pressão sobre prefeitos e governadores.

Ao meio ambiente está sendo conferida importância inferior àquela atribuída a algumas áreas que a União considera estratégica e por isso não as delega, como a organização do trabalho, as eleições, a previdência social e o ensino superior, só para citar alguns exemplos. Será que o meio ambiente, que garante a vida de todos nós, não deveria ser colocado pelo menos no mesmo patamar?

*Texto originalmente publicado no blog Opiniões Sustentáveis

  • Joaquim Maia Neto

    Joaquim Maia Neto é biólogo e Especialista em Regulação de Serviços de Transportes Aquaviários da Agência Nacional de Transpo...

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