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Índios Paumari, o povo das águas

Até pouco mais de 5 anos, os Paumari não consideravam tratar dos recursos naturais de suas terras. Registramos a mudança dessa história.

8 de dezembro de 2014 · 9 anos atrás
  • Adriano Gambarini

    É geólogo de formação, com especialização em Espeleologia. É fotografo profissional desde 92 e autor de 14 livros fotográfico...

O dom de "caminhar" sobre as águas. Crédito: Adriano Gambarini/OPAN
O dom de “caminhar” sobre as águas. Crédito: Adriano Gambarini/OPAN

Imagine-se numa canoa de não mais de 3 m de comprimento e 50 cm de largura, na altura da lamina d’agua, onde qualquer pequeno movimento pode alagar esta pequena embarcação. Agora, fique em pé na proa da canoa com a leveza de uma garça, segure um arpão de 4 m de comprimento e comece a olhar fixamente para a superfície espelhada do lago que reflete um calor lancinante. E nos próximos 20 a 30 minutos tente acompanhar o movimento sutil de um grande peixe que habita aquelas águas, que surgirá numa fração de segundo e sumirá novamente como por encanto. Nesta fração de segundo você terá que decifrar qual foi a direção que este grande peixe tomou e lançar o arpão num movimento certeiro. Se isto der certo, você terá que trazer à tona um pirarucu que certamente pesará pelo menos 80 quilos, colocar sozinho dentro da pequena canoa e remar calmamente como se tudo isto fosse a atividade mais simples de realizar.

Pois bem, os índios Paumari fazem isto como ninguém, e eu tive o privilégio de documentar sua cultura e tradição. Conhecido como “Povo das Águas”, habitam, entre outras, as terras à margem do Rio Tapauá, afluente do Rio Purus, no sul do Estado do Amazonas. E foi justamente nestas terras que deram inicio, no ano passado, na pesca manejada do Pirarucu. Tal trabalho faz parte de uma iniciativa apoiada pelo projeto Raízes do Purus, realizado pela ONG Operação Amazônia Nativa (OPAN) e com o patrocínio da Petrobras. Apesar do manejo do Pirarucu ser uma atividade já realizada em diversas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na Amazônia, trata-se da primeira experiência que se tem notícia realizada em terras indígenas na região do Rio Purus.

Até pouco mais de cinco anos, os Paumari não consideravam tratar dos recursos naturais de suas terras, muito menos de forma controlada. Arrendavam os lagos para barcos pesqueiros que praticavam uma pesca predatória. A elaboração do Plano de Gestão e sua implementação possibilitaram aos índios abolirem estas práticas e bastaram alguns anos de conservação e vigilância nos lagos, onde apenas a pesca para subsistência era permitida, a população do pirarucu e de quelônios aumentou consideravelmente. Esta constatação está mudando a forma como os Paumari vêm suas terras e seus bens naturais. Estão percebendo que conservá-las só reverte beneficamente para seu próprio povo. Afinal, neste segundo ano consecutivo, conseguiram aumentar o estoque de pirarucus nos lagos e ainda pescar para comércio, pouco mais de 80 pirarucus que alcançaram quase 5 mil quilos totais e lhes renderam um bom capital. A venda, autorizada pelo Ibama, com anuência da Funai, já estava previamente acordada com a Cooperativa Mista Agroextrativista Sardinha (COOPMAS), que manteve um barco com compartimento frigorífico ao lado de uma base flutuante, onde os próprios Paumari limpavam e tratavam os peixes. Ou seja, um sistema fechado de pesca, limpeza e congelamento extremamente eficaz, onde foram seguidos elevados padrões de higiene e qualidade. De acordo com o coordenador do Programa Amazonas da OPAN, Gustavo Silveira, o manejo do pirarucu está sendo fundamental para a gestão territorial das terras indígenas Paumari.

Retirada de um pirarucu. Crédito: Adriano Gambarini/OPAN
Retirada de um pirarucu. Crédito: Adriano Gambarini/OPAN

Pescar um pirarucu é sinônimo de paciência e interpretação de sinais, e os Paumari dominam com sapiência esta atividade tradicional passada ao longo das gerações. Tudo gira em observar na superfície da água algum pirarucu que suba rapidamente para respirar. Após isto, dá-se início uma longa e silenciosa espera até a próxima ‘boiada’, quando o pescador tem que arpoar o peixe. Uma técnica secular aperfeiçoada com o uso de grandes redes, que restringem as áreas do lago e assim otimizam a pescaria, já que o manejo tem um tempo determinado para início e fim.

No entanto, as técnicas relativas ao manejo controlado, com contagem sistematizada dos peixes e a posterior etapa de limpeza e resfriamento, foram ensinados aos Paumari pelos técnicos do Instituto Piagaçu e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que há anos realizam esta metodologia nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus e Mamirauá, respectivamente. “Frente aos Paumari, nós atuamos no tocante ao acompanhamento da recuperação dos estoques (além da análise dos resultados das contagens anuais dos lagos da área de manejo), assim como conduzimos as discussões que são realizadas para a estruturação organizacional e gerencial do povo Paumari no processo de manejo”, explica Felipe Rossoni, coordenador do Programa de Conservação e Manejo de Recursos Pesqueiros do Instituto Piagaçu.

Para mim, foi uma experiência mais do que memorável. Há muitos anos meu trabalho como fotógrafo transita entre a ciência pura, acompanhando pesquisadores nos confins amazônicos, e a vivencia com comunidades ribeirinhas e povos indígenas, aprendendo com estas pessoas os sinais sutis da floresta, experimentando uma sabedoria sem fim, sentindo uma simplicidade que toca o coração da alma.

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Operação Amazônia Nativa – OPAN

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