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A era volátil da fotografia

Comodismo tecnológico das câmeras digitais tornou a fotografia efêmera, sem norte, sem causa. Embora não pareça, isso pode ser um risco que envolve a banalização da natureza.

3 de setembro de 2009 · 15 anos atrás
  • Adriano Gambarini

    É geólogo de formação, com especialização em Espeleologia. É fotografo profissional desde 92 e autor de 14 livros fotográfico...

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Cena um: um grupo de adolescentes senta-se à mesa ao lado, sendo uma menor de idade, num ambiente que até alguns anos os jovens apenas ansiavam entrar. Risadinhas a mais, conversas de menos, e uma saca uma câmera digital. O que se segue a partir daí são centenas de cliques, poses, risadas, atormentam o garçom, conversam menos ainda, fotografam, ‘deixa ver’, ‘não gostei, tira outra’, e assim vai. O futuro das fotos? Provavelmente uma pasta com esta centena de imagens, perdidas dentro de um computador que em breve será formatado por entrada de vírus. E lá se vão as fotos…

Cena dois: fim de tarde e um fotógrafo profissional caminha num fragmento de mata amazônica na cidade de Alta Floresta (MT). Carrega uma câmera profissional, uma lente Tele que pesa cerca de cinco quilos. Um teleconverter que duplica sua potência, e seu peso. Está a postos. Vê o vulto de uma harpia pousar numa árvore, pronta pra se recolher na noite que aproxima. Enquanto tenta firmar a lente com as mãos, um turista chega ao lado, e depois de muito custo para encontrar a ave no meio da folhagem, tira seu celular do bolso e mira para a árvore. Faz dois cliques e segue alheio à raridade da cena que teve o privilégio de vivenciar. O futuro das fotos? Um simples ‘delete all’, já que foi difícil o turista lembrar o que existia naquela imagem desfocada e escura. E se o questionassem, diria: ‘Sabe que nem lembro o que eu fotografei? Tinha um gringo com um mega equipamento mirando pra árvore, e eu mirei na mesma direção. Também, com aquele equipamento até eu…’

Cena três: um fotógrafo que passou quase dez anos documentando uma dada região, finalmente tem material suficiente para publicar seu tão sonhado livro. Foram milhares de fotos, desde filmes negativos e cromos, até os modernos arquivos RAW. Durante este tempo conhece inúmeros pesquisadores de fauna silvestre, pede ajuda para encontrar os animais e oferece as fotos como forma de contribuir para a conservação das espécies. Livro lançado, e um comprador pede insistentemente que os autores autografem seu exemplar, e comenta: ‘Adoro a região, vou sempre pra lá! Acompanho seu trabalho há anos, também sou fotógrafo!’.
 
‘Que bom, você trabalha para alguma revista?’, o fotógrafo pergunta.

‘Não, trabalho com engenharia…’. (Mas ele não disse que era fotógrafo??)

No ano seguinte, o fotógrafo (não aquele que constrói prédios e casas, mas o que publicou o livro e paga suas contas com fotografia) ganha um prêmio com a foto de uma espécie rara de animal silvestre. Uma foto que foi resultado de três anos de insistência no meio do mato e dos carrapatos. O então ‘fã’, que comprou o livro e teceu longos elogios, procura o fotógrafo e o questiona por ter submetido a foto vencedora ao concurso. ‘Eu mandei fotos do mesmo animal, eu tinha certeza que ganharia!’, esbraveja. ‘Você verá, vou ganhar de você no ano que vem!!!’ O futuro de tanta admiração? Nunca existiu, ou então o ego doentio abafou…

Nestes últimos anos, tenho escutado e presenciado histórias como estas, cuja freqüência é preocupante. Situações que surgiram com o advento da fotografia digital e que de certa forma mostram como o destino desta arte está frágil. Nos tempos dos filmes, havia uma divisão mais clara entre os fotógrafos profissionais – aqueles que vivem unicamente por este oficio, e os fotógrafos amadores – aqueles que fotografam por hobby.

Não estou questionando a qualidade dos trabalhos, até mesmo porque o que dita a qualidade da fotografia é um conjunto de fatores, que vai do olhar do fotógrafo, sua dedicação e experiência, o quanto suas imagens tocam o leitor até o porquê daquele trabalho. 

Estou me referindo ao fato que antigamente a própria escolha do filme a ser usado definia qual era a intenção e o status do fotógrafo. Filmes cromos de ISO baixa denotavam que aquele usuário entendia um mínimo de fotografia, ele sabia (ou deveria saber) que qualquer pequeno erro na hora do clique, e seria a perda definitiva de seu trabalho. E por serem filmes caros, ficava a cargo dos profissionais usá-los. Aos curiosos restava o bom uso de filmes negativos mais baratos, e caso errassem ao fotografar, havia ainda a possibilidade de ‘salvar’ as fotos na hora da ampliação. 

Na era digital tudo mudou. A tecnologia permite que pequenas câmeras, sem qualquer preocupação profissional, gere boas fotos. Sim, o verbo é gerar mesmo, pois na verdade a fotografia digital não existe, é apenas um apunhado de pixels num espaço limitado em polegadas. Tudo isto comprimido virtualmente dentro de um computador. Nada é físico, até que você decida transformar esta ilusão num pedaço de papel, em formato de ampliação fotográfica. Aí sim, o principio mágico da fotografia de eternizar um momento, se efetiva. Mas Mario Quintana, em sua poética forma de ver a vida já dizia: “Se o homem não fosse cômodo, não teria inventado a roda.”.

O fotógrafo digital se acomodou nas infinitas possibilidades tecnológicas. Iludiu-se com a idéia de que tudo se resolve num computador, num software milagroso, e que não é preciso estudar, pensar, esperar o momento certo do clique. ‘Basta tirar milhares de fotos que uma sai boa!’

Quantas vezes ouvi de clientes, ao serem ‘atormentados’ com minha paciência em esperar pela luz adequada, ou por ficar escolhendo um ângulo mais harmonioso: “Depois você conserta no photoshop!”. E minha resposta é a mesma: “O ideal é fazer o clique perfeito, porque tem coisas que não se consertam, e o pouco a ser corrigido dá um trabalho danado!”. Por isto prefiro ‘perder meu tempo’ na hora da fotografia, do que ficar sentado na frente de um computador tentando recuperar algo que vi – estava lá, mas por imprudência não registrei.

Outra questão mais profunda e que mexe muito com as relações humanas, é o ego. Como uma pequena palavra tem efeitos tão perturbadores! Acredito que isto sempre tenha existido no mundo da fotografia, afinal é uma característica da psique humana, mas às vezes tenho a sensação que a fotografia digital acentuou negativamente nas pessoas. A sensação, muitas vezes ilusória, de que a fotografia está perfeita, a possibilidade de ver aquela foto estampada gratuitamente na Internet, numa agenda ou calendário de alguma empresa que não quer pagar pela fotografia profissional, ou ainda a intenção, muitas vezes remota, de formar um banco de imagens virtual para vender suas imagens, acentuou a competitividade entre os amadores (aqueles que não vivem da fotografia) e os profissionais. E havendo competitividade, haverá o ego sussurrando intrigas e desafetos na mente.

Qual será o futuro desta relação? A pior possível, pois o ‘ego intrigueiro’ cega àquele que lhe dá atenção, inibe o bom senso da pessoa perceber que não faz sentido competir com um fotógrafo profissional. Não que este seja melhor ou pior,  não estou entrando nestas questões subjetivas de qualificações, mas é fato que alguém que depende da fotografia para pagar suas contas, se dedica exclusivamente à ela e abandona a profissão original (muitos fotógrafos da ‘velha guarda’ largaram a arquitetura, engenharia ou geologia, como eu), e ‘respira imagem’ 24 horas por dia, tem muito mais possibilidade de evoluir fotograficamente, de encontrar sua linguagem, um estilo. Por isto não é possível comparar.

O fato é que a era digital popularizou a fotografia a ponto de vender câmeras e softwares ‘mágicos’ em canais de compra na TV, e tornar os celulares cada vez mais preparados a alguns cliques pelo mundo. E permitiu aos profissionais se arriscarem em novas possibilidades e ousadias, e isto foi revolucionário para nós. Mas, (e afirmando por mim) sempre dentro de uma linguagem fotográfica já formada. Algo como mudar a decoração de uma casa que já tem as paredes construídas. 

Ao mesmo tempo, a era digital volatilizou a fotografia. Tornou-a efêmera, sem norte. E isto é preocupante. Principalmente quando vejo tantas pessoas se intitulando fotógrafos de natureza, e esta é uma questão a ser tratada como muito mais cuidado. Pois além do conceito primordial da fotografia como expressão artística se perder no comodismo tecnológico, usar a natureza como trampolim para fantasias egóicas de fotógrafo, é um risco que envolve a banalização da própria natureza! Pois a fotografia de natureza é puro desapego dos próprios interesses. Deve conter algo maior; uma crença, uma entrega, uma postura ética. Deve-se saber que ao entrar num bioma você faz parte dele. E ao registrá-lo, está compactuando com uma necessidade que aquele bioma e todos seus moradores, vivem nos tempos de hoje: a necessidade de sobrevivência.

O futuro deste assunto? Uma próxima coluna, um bate-papo com os leitores interessados em debater este tema.

Para não deixar em branco esta coluna, que afinal é de um fotógrafo, trago um ensaio de uma pequena aldeia no interior do Laos, que fiz há oito anos. Sem luz elétrica ou água encanada, vivendo da subsistência do plantio de arroz, forjavam (ou ainda forjam) suas ferramentas de trabalho. Foices e ancinhos macetados no calor do metal. E para homenagear este modo tão primordial de vida, decidi fotografar da forma mais primordial que tinha ali comigo: uma câmera mecânica F3, uma lente normal 50 mm e alguns filmes TriX black&white.

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