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Recuperação, mitigação, compensação ou contrapartida?

Compensar danos à natureza com cestas básicas ou obras públicas vai levar o país a pagar um preço bem mais caro por não recuperar o meio ambiente que destrói.

17 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O que envolve o ser humano em espanhol é denominado ambiente; já em português é meio ambiente. A coisa já começa pela metade no próprio nome: ambiente é sempre tratado pela metade. Poderíamos dizer que o meio ambiente é sempre consertado na base da meia sola. Pretendo tratar nesta coluna de um dos temas mais controvertidos dentro do em si mesmo controvertido meio ambiente: os valores da “compensação ambiental”. Aliás, a forma como a compensação ambiental tem sido compreendida nesta Terra dos Papagaios, na qual as araras são salvas de helicóptero, como nas melhores cenas policiais de filmes americanos, enquanto tiroteios e assaltos ocorrem au plein soleil.

Meio ambiente, por incrível que pareça, é um conceito mais inteiro do que Natureza. A natureza é uma parte do meio ambiente, visto que este último é composto não só pelo meio físico, mas também pelas atividades culturais desenvolvidas pela comunidade humana. Assim, um dano ao meio ambiente é simultaneamente um dano à natureza e a bens e valores que não são “naturais”. O dano à natureza é o dano ecológico. A Constituição Brasileira trata de meio ambiente e não de ecologia, muito embora reconheça que os ecossistemas são parte integrante do meio ambiente. Uma leitura ao artigo 225 da Constituição Federal demonstra o que foi afirmado.

A Constituição Federal determina que aqueles que causem danos ao meio ambiente devem recuperá-lo. A recuperação, contudo, não é uma coisa de simples definição, visto que devemos responder a pergunta: Até onde se pretende recuperar o meio ambiente? Se eu fosse uma pessoa adepta do deep ecology, responderia: até antes de Adão. Se considerasse que os índios colaboram com a conservação da natureza poderia responder: até antes de Estácio de Sá. E por aí vai. Se entendesse que a Cidade do Rio de Janeiro é uma realidade inegável, poderia fixar como marco temporal, a administração Pereira Passos ou Carlos Lacerda, ou mesmo Marcos Tamoio.

Conceitos confusos

O que parece evidente é que o conceito de recuperação não é pacífico. Cá para nós, em meio ambiente não há nada pacífico, basta que se compareça a qualquer audiência pública para que se entenda do que estou falando. O critério de recuperação que tem sido usado pelos órgãos ambientais, como regra, é o retorno ao estado imediatamente anterior ao dano (status quo ante). Muitas vezes, devido a demora nos processos administrativos e judiciais com vistas a fazer com que o causador do dano o recupere, a recuperação ocorre por vias naturais. Nesses casos, a obrigação do meliante perece. Importante observar que a recuperação não é uma pena. Ela é uma obrigação civil que poderá, ou não, vir acompanhada de uma pena. O simples fato de que o responsável por um dano tenha pago uma multa, não o desobriga de reparar o estrago que tenha produzido.

A mitigação é uma redução do dano. Quando um determinado empreendimento está sendo examinado por um órgão ambiental, cabe à administração, em juízo de ponderação entre benefícios e custos, definir a quantidade de danos ambientais que é social e ecologicamente aceitável. Sim, por mais estranho que possa parecer, a nossa sociedade admite que existam danos aceitáveis. Tais análises, contudo, nem sempre são realizadas de forma adequada e, em seu nome, já se cometeu muita barbaridade. No momento em que é admitida a inevitabilidade de um certo grau de dano, passa-se a examinar como é possível minorá-lo ou mitigá-lo. Sempre que os danos forem mitigáveis, cabe à administração definir as medidas capazes de reduzi-los ao mínimo indispensável.

Outra questão é a compensação. Compensação é a medida a ser adotada para as hipóteses nas quais não seja possível recuperar ou mitigar danos ao meio ambiente. Em que deve consistir a compensação ambiental? Na minha opinião, em investimentos em meio ambiente. Ora, direi ouvir estrelas. “Investimentos em meio ambiente” é uma fórmula aberta que não significa absolutamente nada. E é a partir dessa fórmula aberta que a mágica começa a ser praticada e toda uma ninhada de coelhos vai saindo das cartolas dos magos da administração. É muito comum que, em nome de compensações ambientais, uma série de equipamentos, jipes, aparelhos de ar condicionado, computadores e uma enorme quantidade de bens que nada têm a ver com investimentos em meio ambiente sejam exigidos dos empreendedores e passem a integrar o patrimônio público. Há, também, a modalidade de doações para ongs, voltadas para a defesa da causa X ou Y.

Um macaco por uma cesta básica

Se formos analisar o aspecto judicial do problema, sem muita dificuldade, chegaremos à constatação que danos ambientais são redutíveis a uma determinada quantidade de cestas básicas. Assim, alguns quilos de alimentos não perecíveis são equivalentes a dois ou três macacos pregos mortos ou a alguns pés de pau-brasil cortados por motosserra, pois, em geral, elas têm servido de “penas” impostas àqueles que causam danos ao meio ambiente ou mesmo “medida compensatória”.

O que me parece relevante, seja na prática administrativa, seja na judicial, é que ambas denotam uma inadequada avaliação dos métodos aptos para compensar danos ambientais e, por outro lado, implicam na utilização do meio ambiente como instrumento capaz de servir de pretexto para a solução de problemas sociais e orçamentários que são da responsabilidade direta da administração pública. Há uma indisfarçável prevalência dos problemas ditos sociais sobre os ambientais e um “lavar as mãos” da administração em relação aos seus próprios custos. Cria-se um falso antagonismo entre meio ambiente e pobreza, vendendo-se a ilusão de que se está combatendo a pobreza e que, portanto, a defesa do meio ambiente é secundária.

O fato é que, sem força junto ao poder executivo, os órgãos ambientais, mais e mais, necessitam das “medidas compensatórias” como fonte de recursos extra-orçamentários. Os órgãos ambientais, com a prática, vão se tornando compensação – dependentes. Seria importante que aqueles que se dedicam à função de watchdog dos órgãos ambientais fizessem um cálculo sobre a importância econômica das medidas compensatórias na administração ambiental. Uma outra observação que não pode deixar de ser tecida é que tais recursos, de uma forma ou de outra, têm controles muito mais fluídos, dando margem a inúmeras situações atípicas que não são recomendáveis.

Não bastassem as figuras acima mencionadas, ultimamente está sendo criada a chamada “contrapartida”. A base legal, francamente, é por mim desconhecida. Normalmente a contrapartida tem por objetivo resolver um problema social. Em função de um dano ambiental, construa-se uma ponte, ou uma escola, ou seja lá o que for.

Ciclo danoso

Qual a conseqüência concreta das práticas que estão sendo mencionadas neste artigo? Muitas, sem dúvida. Todas nefastas para o meio ambiente. O primeiro ponto é que na ânsia de suprir necessidades orçamentárias evidentes, os órgãos ambientais acabam se tornando lenientes com danos ambientais, visto que necessitam que os danos sejam maiores para que as compensações também o sejam. Na medida em que a fatia das compensações seja maior nos orçamentos, menor é o orçamento “oficial” do ano seguinte e aí começa um ciclo de dependência que tende a se perpetuar e reproduzir, como qualquer dependência. A única forma para sair do emaranhado é cortar o ciclo, “só por hoje”, e rejeitar a prática.

Uma outra conseqüência grave é gerar uma nociva promiscuidade entre empresas e órgãos ambientais, o que acaba prejudicando a todos. É muito pouco saudável para as empresas e para os órgãos ambientais que projetos oficiais sejam bancados por empresas. O que se precisa é que empresas e ambientalistas lutem por orçamentos reais para os órgãos ambientais. Aquelas empresas que desejarem realizar programas ambientais, que o façam de forma autônoma e não sob a forma de financiamento para programas públicos. É urgente que as medidas compensatórias se limitem a aspectos ambientais e aos danos reais ao meio ambiente. Se o processo de barganha que se estabeleceu em relação às medidas compensatórias não for estancado o quanto antes, em futuro não muito distante veremos o “preço” que custou à sociedade não ter dotado os órgãos ambientais com orçamentos decentes e reais.

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